Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1868

Allan Kardec

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Do pecado original segundo o judaísmo



Pode ser interessante, para os que o ignoram, conhecer a doutrina dos judeus sobre o pecado original. Tiramos a explicação seguinte do jornal israelita la Famille de Jacob, que é publicado em Avignon, sob a direção do grande rabino Benjamin Massé; número de julho de 1868.

“O dogma do pecado original está longe de se achar entre os princípios do Judaísmo. A lenda profunda que relata o Talmude (Nida XXXI, 2) e que representa os anjos, fazendo a alma humana, no momento em que vai se encarnar num corpo terrestre, prestar o juramento de se manter pura durante sua estada neste planeta, a fim de retornar pura ao Criador, é uma poética afirmação de nossa inocência nativa e de nossa independência moral da falta de nossos primeiros pais. Essa afirmação, contida nos nossos livros tradicionais, é conforme ao verdadeiro espírito do Judaísmo.

“Para definir o dogma do pecado original, bastar-nos-á dizer que tomam ao pé da letra o relato da Gênese, cujo caráter lendário se desconhece, e que, partindo desse ponto de vista errado, aceitam cegamente todas as consequências daí decorrentes, sem se preocupar com a sua incompatibilidade com a natureza humana e com os atributos necessários e eternos que a razão confere à natureza divina.

“Escravos da letra, afirmam que a primeira mulher foi seduzida pela serpente; que ela comeu um fruto proibido por Deus; que fez o seu esposo comê-lo, e que, por esse ato de revolta aberta contra a vontade divina, o primeiro homem e a primeira mulher incorreram na maldição do céu, não só para si, mas para os seus filhos, mas para a sua raça, mas para a Humanidade inteira, para a Humanidade cúmplice, em qualquer distância no tempo em que se encontre dos culpados, cúmplice de seu crime, do qual ela é, por consequência, responsável em todos os seus membros atuais e futuros.

“Segundo essa doutrina, a queda e a condenação de nossos primeiros pais foram uma queda e uma condenação para a sua posteridade. A partir de então, para o gênero humano, males inumeráveis que teriam sido sem fim sem a mediação de um Redentor, tão incompreensível quanto o crime e a condenação que o chamam. Assim como o pecado de um só foi cometido por todos, a expiação de um só será a expiação de todos. Perdida por um só, a Humanidade será salva por um só. A redenção é a consequência inevitável do pecado original.

“Compreende-se que não discutamos essas premissas com suas consequências, que para nós não são mais aceitáveis, tanto do ponto de vista dogmático quanto do ponto de vista moral.

“Nossa razão e nossa consciência jamais se acomodarão a uma doutrina que apaga a personalidade humana e a justiça divina e que, para explicar as suas pretensões, nos faz viver todos juntos tanto na alma quanto no corpo do primeiro homem, ensinando-nos que, por mais numerosos que sejamos no curso das idades, fazemos parte de Adão em espírito e em matéria; que tomamos parte em seu crime e que devemos ter nossa parte na sua condenação.

“O sentimento profundo de nossa liberdade moral se recusa a essa assimilação fatal, que tiraria a nossa iniciativa, que nos acorrentaria, malgrado nosso, num pecado distante, misterioso, do qual não temos consciência, e que nos faria sofrer um castigo ineficaz, pois que, aos nossos olhos, não seria merecido.

“A ideia indefectível e universal que temos da justiça do Criador se recusa ainda muito mais energicamente a crer no comprometimento, com a falta de um só, dos seres livres criados sucessivamente por Deus na sequência dos séculos.

Se Adão e Eva pecaram, só a eles pertence a responsabilidade de seu erro; só a eles a proscrição, a expiação, a redenção por meio de esforços pessoais para reconquistar a sua nobreza. Mas nós, que viemos após eles, que, como eles, fomos objeto de um ato idêntico da parte do poder criador, e que devemos, a esse título, ter um valor igual ao de nosso primeiro pai aos olhos do nosso Criador, nascemos com a nossa pureza e a nossa inocência, de que somos os únicos donos, os únicos depositários, e cuja perda ou conservação não dependem absolutamente senão de nossa vontade e das determinações do nosso livre-arbítrio.

“Tal é, sobre esse ponto, a doutrina do Judaísmo, que nada poderia admitir que não fosse conforme à nossa consciência esclarecida pela razão.”

B. M.

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