Como deve ter sido notado, o Sr. Constant chegou a Morzine com a idéia da que a causa do mal era puramente físico. Podia ter razão, porque seria absurdo supor a priori uma influência oculta a todo efeito cuja causa é desconhecida. Segundo ele, a causa está inteiramente nas condições higiênicas, climatéricas e fisiológicas dos habitantes.
Estamos longe de pretender devesse ele ter vindo com uma opinião contrária prontinha, o que não teria sido mais lógico Dizemos apenas que com sua idéia preconcebida não viu a que acaso podia referir-se, ao passo que se ao menos tivesse admitido a possibilidade de outra causa, teria visto outra coisa.
Quando uma causa é real, deve poder explicar todos ou efeitos que produz. Se certos efeitos vêm contradizê-la, é que aquela é falsa, ou não é única e, então, é preciso procurar uma outra. Incontestàvelmente é a marcha mais lógica. E a justiça, nas suas investigações em busca da criminalidade, não procede de modo diverso, Se se trata de constatar um crime, chega ela com a idéia de que deve ter sido cometido desta ou daquela maneira, por tal ou qual pessoa? Não. Ela obseril as menores circunstâncias e, remontando dos efeitos às causas, afasta as que são inconciliáveis com os efeitos observados de dedução em dedução, é raro que não chegue à constatação da verdade. Dá-se o mesmo nas ciências. Quando uma dificuldade resta insolúvel, o mais sábio é suspender o julgamento.Então toda hipótese é permitida para tentar resolvê-la. Mas se a hipótese não resolve todos os casos da dificuldade, é que é falsa. Não tem o caráter de uma verdade absoluta se não der a razão de tudo. É assim que no Espiritismo, por exemplo, à parte toda constatação material, remontando dos efeitos às causas, chega-se ao principio da pluralidade das existências, como conseqüência inevitável, porque só ele explica claramente o que nenhum outro pôde explicar.
Aplicando este método aos fatos de Morzine, é fácil ver que a causa Única admitida pelo Sr. Constant está longe de tudo explicar. Ele constata, por exemplo, que geralmente as crises cessam quando os doentes estão fora da comuna. Se, pois, o mal é devido & constituição linfática e à má nutrição dos habitantes, como a causa cessa de agir assim que transpõem a ponte que os separa da comuna vizinha? Se as crises nervosas nãofossem acompanhadas de nenhum outro sintoma, ninguém duvida que se pudesse, aparentemente, atribuí-los a um estado constitucional, mas há fenômenos que não seriam explicados exclusivamente por esse estado.
Aqui o Espiritismo nos oferece uma comparação chocante. No começodas manifestações, quando se viam mesas girando, batendo, erguendo-se no espaço sem ponto de apoio, o primeiro pensamento foi que isso podia ser por ação da eletricidade, do magnetismo ou de outro fluido desconhecido. A suposição não era desarrazoada; ao contrário: oferecia probabilidades. Mas quando se viu que os movimentos davam sinal de inteligência, manifestavam uma vontade própria, espontânea e independente, a primeira hipótese teve de ser abandonada, pois nãoresolvia esta fase do fenômeno, e houve que reconhecer-se uma causa inteligente para um efeito inteligente. Qual era sua inteligência? Foi, ainda, por via da experimentação que a ela se chegou, e não por um sistema preconcebido.
Outro exemplo. Quando, observando a queda dos corpos, Newton notou que todos caíam na mesma direção, procurou a causa e levantou uma hipótese. Esta hipótese, resolvendo todos os casos de mesmo gênero, tornou-se a lei da gravitação universal, lei puramente mecânica, porque todos os efeitos eram mecânicos. Mas suponhamos que veado cair uma maçã esta tivesse obedecido à sua vontade; que ao seu comando em vez de descer tivesse subido, fosse para a direita ou para a esquerda, tivesse parado ou entrado em movimento; que, por um sinal qualquer tivesse respondido ao seu pensamento, ele teria sido forçado a reconhecer algo que não uma lei mecânica, Isto é, que não sendo inteligente, a maçã deveria ter obedecido a uma inteligência. Assim foi com as mesas girantes. Assim é com os doentes de Morzine.
Para não falar senão de fatos observados pelo próprio Sr.Constant, perguntaríamos como uma alimentação má e um temperamento linfático podem produzir a antipatia religiosa em criaturas naturalmente religiosas e até devotas? Se fosse um fato isolado podia ser uma exceção; mas reconhece-se que é geral e que é um dos caracteres da doença lá e alhures. Eis um efeito: procurai a sua causa. Não a conheceis? Seja. Confessai-o, mas não digais que é devido ao fato de os habitantes comerem batatas e pão preto, nem à sua ignorância e inteligência obtusa, porque vos oporão o mesmo efeito entre gente que vive na abundância e recebeu instrução, Se o conforto bastasse para curar a impiedade, ficaríamos admirados de encontrar tantos ímpios e blasfemadores entre as criaturas que de nada se privam.
O regime higiênico explicaria melhor este outro fato não menos característico e geral do sentimento de dualidade, que se traduz de modo inequívoco na linguagem dos doentes? Certo que não. É sempre uma terceira pessoa quem fala. Sempre uma distinção entre ele e a moça, fato constante nos indivíduos no mesmo caso, seja qual for a sua classe social. Os remédios são ineficazes por uma boa. razão: é que são bons, como diz aquele terceiro, para a moça, isto é, para o ser corporal; mas não para o outro, aquele que não é visto e que, entretanto, a faz agir, a constrange, a subjuga, a derruba e se serve de seus membros para bater e de sua boca para falar. Ele diz nada haver visto que justifique a idéia da possessão. Mas os fatos estacam ante os seus olhos; ele mesmo os cita. Podem ser explicados pela. causa que ele lhes atribui? Não. Então esta causa não é verdadeira. Ele via os efeitos morais e devia procurar uma causa moral.
Outro médico, o Dr. Chiara, que também visitou Morzine, publicou sua apreciação **, constatando os mesmos fenômenos e os mesmos sintomas que o Sr. Constant. Mas para ele, como para este último, os Espíritos malignos são imaginação dos doentes. Em seu trabalho encontramos o seguinte fato, a propósito de uma doente:
“O acesso começa por um soluço e movimentos de deglutição, pela flexão e soerguimentos alternativos da cabeça sobre o tronco; depois de várias contorções que lhe dão ao rosto tão suave uma expressão horrorosa: “S... médico, grita ela, eu sou o diabo..., tu queres fazer-me deixar a moça; eu não te temo... vem!... há quatro anos que a domino: ela é minha, nela ficarei. - Que fazes nesta moça? — Eu a atormento. — E porque, infeliz, atormentas uma pessoa que não te fez nenhum mal? — Porque me puseram aqui para atormentá-la. — És um celerado. “Aqui paro, atordoado por uma avalanche de injúrias e imprecações.”
Falando de outra doente, diz ele:
“Após alguns instantes de uma cena muda, de uma pantomima mais ou menos expressiva, nossa possessa ‘põe-se a soltar pragas horríveis. Espumando de raiva, injuria-nos a todos com um furor sem igual. Mas — digamo-lo já — não é a moça que assim se exprime, é o diabo que a possui e. que, servindo-se de seu órgão, fala em seu próprio nome. Quanto à nossa energúmena, é apenas um instrumento passivo no qual foi inteiramente abolida a noção do eu. Se for interpelada diretamente, fica muda: só Belzebu responderá.
“Enfim, depois de uns três minutos esse drama horrível cessa de repente, como que por encanto. A mocinha B... retoma o ar maiscalmo, o mais natural do mundo, como se nada tivesse acontecido. Tricotava antes, eis que tricota depois, parecendo não ter interrompido o trabalho. Interrogo-a; responde que não sente a menor fadiga nem se lembra de nada. Falo-lhe das injúrias. que nos dirigiu: ela as ignora; mas parece contrariar-se e nos pede desculpas.
“Em todas essas doentes a sensibilidade geral é abolida completamente. Podem ser pinçadas, beliscadas, ou queimadas e nada sentem. Numa delas fiz uma dobra na pele e atravessei com uma agulha comum: correu sangue mas ela nada sentiu.
“Em Morzine vi ainda várias dessas doentes fora do estado da crise: eram moças gordas, agradáveis, gozando da plenitude das faculdades físicas e morais. Vendo-as é impossível supor a existência da menor afecção.”
Isto contrasta com o estado raquítico, macilento e sofredor que o Sr.Constant admite ter notado. Quanto ao fenômeno da insensibilidade durante as crises, não é, como se viu, a única aproximação que os fatos apresentam com a catalepsia, o sonambulismo e a dupla visão.
De todas essas observações o Dr. Chiara chegou a esta definição do mal:
“É um conjunto mórbido, formado de diferentes sintomas, tomados um pouco em todo o quadro patológico das moléstias nervosas e mentais; numa palavra, é uma afecção sui generis, para a qual, pouco ligando às denominações, conservarei o nome de hístero-demonia, que já lhe foi dado.”
É caso de dizer: “Quem tiver ouvidos, ouça.” É um mal particular, formado de diferentes partes e que tem sua fonte um pouco em toda parte. É o mesmo que dizer simplesmente: “É um mal que não compreendo.” É um mal sui generis: estamos de acordo; mas qual esse gênero, ao qual nem sabeis dar o nome?
Poderíamos provar a insuficiência de uma causa puramente material para explicar o mal de Morzine, por muitas outras aproximações, que os próprios leitores farão. Reportem-se aos artigos precedentes, ao que dizemos da maneira por que se exerce ação dos Espíritos obsessores, dos fenômenos resultantes dessa ação, e a analogia ressaltará com a última evidência. Se, para a gente de Morzine, o terceiro que interfere é o diabo, é porque lhes disseram que era o diabo e eles só sabiam isto. Aliás é sabido que certos Espíritos de baixo nível divertem-se tomando nomes infernais para apavorar. A este nome substitui em sua boca o vocábulo Espírito, ou antes, maus Espíritas e tereis a reprodução idêntica de todas as cenas de obsessão e de subjugação que referimos. É incontestável que, numa região onde dominasse & idéia do Espiritismo, sobrevindo tal epidemia, os doentes se dissessem solicitados por maus Espíritos, quando, aos olhos de certas pessoas parecessem loucos. Dizem que é o diabo; é uma afecção nervosa, É o que teria acontecido em Morzine, se o conhecimento do Espiritismo ali tivesse precedido a invasão desses Espíritos. Então os adversários teriam gritado: socorro! Mas a Providência não lhes quis dar essa satisfação passageira: ao contrário, quis provar sua importância para combater o mal pelos meios ordinários.
No final de contas, recorreram ao afastamento das doentes, que foram dirigidas para os hospitais de Thomon, Chambéry, Lyon, Mâcon etc. O meio era bom porque, quando todas transportadas, podiam se gabar de que não existiam mais doentes na região. A medida podia basear-se num fato observado, o da cessação das crises fora da comuna; mas parece ter-se baseado em outra consideração: o isolamento das doentes. Aliás a opinião do Sr. Constant é categórica: Deveria haver uma espécie de lazareto, diz ele, onde pudessem ser escondidas, assim que se mostrassem, as desordens morais e nervosas, cuja propriedade contagiosa é estabelecida, como disse meu velho amigo Dr.Bouchut. Esperando melhor, tal lazareto foi encontrado no asilo de alienados. É o único lugar verdadeiramente conveniente para o tratamento racional e completo das moléstias que me ocupam, quer se admita que sua doença é mesmo uma forma, uma variedade de alienação, quer mesmo não admitindo que usem, sob qualquer titulo, tomadas como alienadas. É necessário sobre elas produzir um certo grau de intimidação, ocupar seu espírito de modo a deixar o menos tempo possível às suas preocupações por outra preocupação; subtraí-las absolutamente toda influência religiosa irrefletida e desmedida, às conversas, aos conselhos ou observações susceptíveis de alimentar seu erro, que, ao contrário, deve ser combatido diariamente; dar-lhes um regime apropriado; obrigá-las, enfim, a se submeterem às prescrições que seria útil associar a um tratamento puramente moral e ter os meios de execução. Onde encontrar reunidas todas essas condições necessárias, essenciais, senão num asilo? Teme-se para essas doentes o contacto com as verdadeiras alienadas. Tal contacto seria menos prejudicial do que se pensava e, afinal, teria sido fácil conservar provisoriamente um pavilhão só para as doentes de Morzine, Se sua aglomeração tivesse qualquer inconveniente, ter-se-ia encontrado compensação na própria reunião e estou convicto de que o nome de asilo, casa de loucos, por si só tivesse produzido mais de uma cura que se tivessem encontrado poucos diabos que uma ducha não tivesse posto em fuga.”
Estamos longe de partilhar. do otimismo do Sr. Constant sobre a inocuidade do contacto dos alienados e a eficácia das duchas emcasos semelhantes. Ao contrário, estamos persuadidos de que em tal regime pode produzir uma verdadeira loucura, onde esta é apenas aparente. Ora, note-se bem que fora das crises, as doentes têm todo o bom senso e são sãs de corpo e Espírito; não há nelas senão uma perturbação passageira, sem quaisquer caracteres da loucura propriamente dita. Seu cérebro necessariamente enfraquecido pelos ataques freqüentes que experimenta, seria ainda mais facilmenteimpressionável pela visão dos loucos e pela só idéia de achar-se entre loucos, O Sr. Constant atribui o desenvolvimento e a continuidade da moléstia à imitação, à influência das conversas dos doentes entre si e aconselha a pô-las entre loucos ou isolá-las num pavilhão do hospital! Não é uma contradição e é isto que ele entende por tratamento moral?
Em nossa opinião o mal se deve a uma causa absolutamente