Os pré-adamitas
Uma carta que recebemos contém a seguinte passagem:
“O ensino que vos foi dado pelos Espíritos, força é convir, repousa sobre uma moral absolutamente conforme à do Cristo, e mesmo muito mais desenvolvida do que a que se acha no Evangelho, porque mostrais a aplicação daquilo que muitas vezes ali só se acha em preceitos gerais. Quanto ao problema da existência dos Espíritos e às suas relações com o homem, para mim não é objeto de qualquer dúvida. Eu estaria convencido apenas pelo testemunho dos Pais da Igreja, se não tivesse a prova da minha própria experiência. Assim, não levanto nenhuma objeção a respeito. Já o mesmo não se dá com certos pontos de sua doutrina, evidentemente contrários ao testemunho das Escrituras. Por hoje, limitar-me-ei a uma só questão, a relativa ao primeiro homem. Dizeis que Adão nem é o primeiro nem o único que tenha povoado a Terra. Se assim fosse, seria preciso admitir que a Bíblia é um erro, desde que o ponto de partida seria controvertido. Vede, pois, a que consequências isto nos conduz! Confesso que tal pensamento perturbou-me as ideias. Mas como, antes de tudo, sou pela verdade e a fé nada pode ganhar se construída sobre um erro, peço-vos a bondade de dar alguns esclarecimentos a respeito, se vossas folgas o permitirem. E se puderdes tranquilizar a minha consciência, vos serei muito reconhecido.”
RESPOSTA
A questão do primeiro homem, na pessoa de Adão, como origem única da Humanidade, não é a única sobre a qual tiveram que se modificar as crenças religiosas.
Em certa época, o movimento da Terra pareceu de tal modo oposto ao texto das Escrituras, que não houve formas de perseguição a que esta teoria não tenha servido de pretexto e, contudo, vê-se que, parando o Sol, Josué não impediu que a Terra girasse. Ela gira, malgrado os anátemas, e hoje ninguém o contraria, sem ferir a própria razão.
Igualmente diz a Bíblia que o mundo foi criado em seis dias e fixa a data de cerca de 4000 anos antes da Era Cristã. Antes disso, a Terra não existia. Ela foi tirada do nada. O texto é formal, e eis que a Ciência positiva, inexorável, vem provar o contrário. A formação do globo está escrita em caracteres imprescritíveis no mundo fóssil, e está provado que os seis dias da Criação são outros tantos períodos, talvez de várias centenas de milhares de anos cada um. Isto não é um sistema, uma doutrina, uma opinião isolada. É um fato tão constante quanto o movimento da Terra, que a Teologia não pode deixar de admitir. Assim, só nas classes infantis é que se ensina que o mundo foi feito em seis vezes vinte e quatro horas, prova evidente do erro em que se pode cair, tomando ao pé da letra as expressões de uma linguagem frequentemente figurada. Teria sido a autoridade da Bíblia atingida, aos olhos dos teólogos? Absolutamente. Eles se renderam à evidência e concluíram que o texto podia receber uma interpretação.
Escavando os arquivos da Terra, a Ciência reconheceu a ordem na qual os diferentes seres vivos apareceram em sua superfície. A observação não deixa dúvidas quanto às espécies orgânicas que pertencem a cada período, e essa ordem está de acordo com o que é indicado no Gênesis, com a diferença de que essa obra, em vez de ter saído miraculosamente das mãos de Deus em algumas horas, realizouse, sempre por sua vontade, mas conforme as leis das forças da Natureza, em alguns milhões de anos. Por isso será Deus menor e menos poderoso? Sua obra será menos sublime por não ter o prestígio da instantaneidade? Evidentemente não. Seria preciso fazer da Divindade uma ideia muito mesquinha para não reconhecer sua onipotência nas leis eternas por ela estabelecidas para reger os mundos.
Assim como Moisés, a Ciência coloca o homem na última ordem da criação dos seres vivos, mas Moisés coloca o dilúvio universal no ano 1654 do mundo, ao passo que a Geologia nos mostra esse grande cataclismo anteriormente ao aparecimento do homem, visto que até aquele dia, nas camadas primitivas, não se encontra nenhum traço de sua presença, nem de animais da mesma categoria, do ponto de vista físico. Mas nada prova que isto seja impossível. Várias descobertas já lançaram dúvidas a respeito. É possível, então, que de um momento para outro se adquira a certeza dessa anterioridade da raça humana. Resta saber se o cataclismo geológico cujos traços estão por toda a Terra é o mesmo dilúvio de Noé. Ora, a lei da duração da formação das camadas fósseis não permite confundi-los, pois o primeiro remonta talvez a cem mil anos. A partir do momento em que forem encontrados traços da existência do homem antes da grande catástrofe, estará provado que Adão não é o primeiro homem, ou que sua criação se perde na noite dos tempos. Contra a evidência não há raciocínio possível. Os teólogos deverão, assim, aceitar este fato, como aceitaram o movimento da Terra e os seis períodos da Criação.
Na verdade, a existência do homem antes do dilúvio geológico é ainda hipotética, mas isto é o de menos. Admitindo que o homem tenha aparecido pela primeira vez na Terra 4000 anos antes do Cristo, se 1650 anos mais tarde toda a raça humana foi destruída, com exceção de um só, resulta que o povoamento da Terra só pode datar de Noé, ou seja, de 2350 anos antes de nossa era. Ora, quando os hebreus emigraram para o Egito, no século XVIII a. C., encontram esse país muito povoado e com uma civilização já muito adiantada.
Prova a História que já nessa época a Índia e outras regiões eram igualmente florescentes. Então seria preciso que do décimo quarto ao décimo oitavo século a. C., isto é, no espaço de 600 anos, não só a posteridade de um só homem tivesse podido povoar todas as imensas regiões então conhecidas, supondo que as outras não o fossem, mas que, nesse curto intervalo, a espécie humana tivesse podido elevar-se da ignorância absoluta do estado primitivo ao mais alto grau do desenvolvimento intelectual, o que é contrário a todas as leis antropológicas. Ao revés, tudo se explica admitindo-se a anterioridade do homem; o dilúvio de Noé como uma catástrofe parcial, confundida com o cataclismo geológico, e Adão, que viveu há 6000 anos, como tendo povoado uma região ainda desabitada. Uma vez mais, nada poderia prevalecer contra a evidência dos fatos. Por isso julgamos prudente não tomar posição em falso, muito levianamente, contra doutrinas que cedo ou tarde, como tantas outras, podem mostrar a falta de razão dos que as combatem. Longe de perder, as ideias religiosas se engrandecem com a Ciência. É o meio de não dar margem ao ceticismo mostrando-lhe o lado vulnerável.
Que seria da religião se ela se obstinasse contra a evidência; se persistisse em anatematizar os que não aceitassem a letra das Escrituras? O resultado seria que não se poderia ser católico sem crer no movimento do Sol, nos seis dias da criação e nos 6000 anos de existência da Terra. Calcule-se o que hoje restaria de católicos. Proscreveis também os que não tomam ao pé da letra a alegoria da árvore e seu fruto, da costela de Adão, da serpente, etc.? A religião será sempre forte quando marchar de acordo com a Ciência, porque estará ligada à parte esclarecida da população. É o único meio de desmentir o preconceito que a faz ser considerada, por gente superficial, como antagonista do progresso. Se alguma vez ─ que Deus não o permita ─ ela repelisse a evidência dos fatos, afastaria os homens sérios e provocaria um cisma, porque nada prevaleceria contra a evidência.
Assim a alta Teologia, que conta com homens eminentes pelo saber, sobre muitos pontos controvertidos admite uma interpretação conforme à boa razão. Apenas é lamentável que reserve suas interpretações aos privilegiados e continue a ensinar ao pé da letra nas escolas. Daí resulta que a letra, inicialmente aceita pelas crianças, é mais tarde repelida, quando chegam à idade da razão. Nada tendo como compensação, tudo rejeitam e aumentam o número dos incrédulos absolutos. Ao contrário, dai à criança somente aquilo que mais tarde a razão pode admitir e a razão, desenvolvendo-se, a fortalecerá nos princípios que lhe tiverem sido inculcados. Assim falando, cremos servir aos mais verdadeiros interesses da religião. Ela será sempre respeitada, se mostrada de acordo com a realidade e quando não a fizerem consistir em alegorias cuja realidade o bom-senso não pode admitir.