O trapeiro da rue Des Noyers
Sob o título de Cenas de feitiçaria no século XIX, “Le Droit” relata o seguinte:
“Um dos mais estranhos fatos ocorre atualmente na Rua des Noyers. O Sr. Lesage, ecônomo do Palácio da Justiça, mora num apartamento dessa rua. Há algum tempo que projéteis, vindos não se sabe de onde, quebram as vidraças e vão atingir os que se encontram na casa, ferindo-os mais ou menos gravemente. São fragmentos bastante consideráveis de tições meio carbonizados, pedaços de carvão de pedra muito pesados e até dos chamados carvões de Paris. A criada do Sr. Lesage recebeu diversos no peito, ficando com fortes contusões.
“A vítima de tais sortilégios acabou pedindo a assistência da polícia. Agentes foram postos de vigia, mas eles próprios acabaram sendo atingidos pela artilharia invisível e lhes foi impossível saber de onde vinham os golpes.
Tendo-se tornado insuportável a permanência numa casa onde nunca se sabe o que acontecerá, o Sr. Lesage solicitou ao proprietário a rescisão do contrato. A demanda recebeu despacho favorável e mandaram vir, para redigir o termo de rescisão, o Sr. Vaillant, meirinho, cujo nome convinha perfeitamente numa circunstância em que as diligências não poderiam ser feitas sem perigo.
“Com efeito, quando o funcionário ministerial iniciava a redação do ato, um pedaço enorme de carvão, lançado com extrema força, entrou pela janela e foi bater na parede, fazendo-se pó. Sem se desconcertar, o Sr. Vaillant serviu-se do pó, como outrora Junot da terra levantada pela bomba, para difundir sobre a página que acabava de escrever.
“Em 1847 aconteceu coisa análoga na Rua des Grès, cujo relato então fizemos. Um tal L..., vendedor de carvão, também servia de alvo a fantásticos sagitários, e esses incompreensíveis arremessos de pedras punham em pânico todo o quarteirão.
Ao lado da casa do carvoeiro havia um terreno vago, em meio ao qual se achava a antiga igreja da Rua des Grès, hoje Escola das Freiras da Doutrina Cristã. A princípio pensaram que vinham de lá os projéteis, mas logo verificaram que não.
Quando vigiavam um lado, as pedras vinham do outro. Entretanto, acabaram pegando em flagrante delito o mágico, que não era outro senão o próprio Sr. L...
Tinha recorrido a essa fantasmagoria por estar descontente na casa e querer a rescisão do contrato.
“Não foi o mesmo com o Sr. Lesage, cuja honorabilidade excluiu qualquer ideia de astúcia e que, aliás, estava contente com o apartamento e o deixou com pesar.
“Espera-se que o inquérito, conduzido pelo Sr. Hubaut, comissário do bairro da Sorbonne, esclareça o mistério, que não deixa de ser uma brincadeira de mau gosto, já muito prolongada.”
1. (A São Luís). ─ Teríeis a bondade de dizer-nos se são verdadeiros os fatos acima, de cuja possibilidade não duvidamos?
─ Sim. Os fatos são verdadeiros. Apenas a imaginação dos homens aumentouos, por medo ou por ironia. Mas, repito, são verdadeiros. Tais manifestações são provocadas por um Espírito que se diverte um pouco, às custas dos moradores do lugar.
OBSERVAÇÃO: Desde então tivemos ocasião de ver o Sr. Lesage, que nos honrou com sua visita e não só confirmou os fatos, mas os completou e retificou em vários pontos, São Luís tinha razão de dizer que seriam aumentados pelo medo ou pela ironia. Com efeito, a história da poeira colhida estoicamente pelo corajoso meirinho, a exemplo de Junot, foi uma invenção do jornalista brincalhão. No próximo número faremos um relato muito exato dos acontecimentos, com as novas observações a que derem ensejo.
2. ─ Há na casa alguém que seja a causa dessas manifestações?
─ Elas sempre são causadas pela presença da pessoa que é atacada. O Espírito perturbador se apega ao habitante do lugar onde se acha e quer fazer-lhe maldades ou fazê-lo mudar-se.
3. ─ Perguntamos se entre os moradores da casa existe alguém que é a causa desses fenômenos por uma influência mediúnica espontânea e involuntária.
─ É mesmo necessário, porque sem isto o fato não ocorreria. Um Espírito habita seu lugar de predileção; fica inativo até que se apresente ali alguém cuja natureza lhe sirva. Quando aparece essa pessoa, então ele se diverte o quanto pode.
4. ─ Esses Espíritos são sempre de ordem muito inferior. A aptidão para lhes servir de instrumento é uma hipótese desfavorável à pessoa? Isto denuncia certa simpatia com os seres de tal natureza?
─ Não é bem assim, porque tal aptidão depende de uma disposição física. Contudo, muitas vezes denuncia uma tendência material que seria preferível não se ter, porque quanto mais elevada moralmente for a pessoa, mais atrai para si os bons Espíritos, que necessariamente afastam os maus.
5. ─ Onde o Espírito encontra os projéteis de que se serve?
─ Na maioria das vezes esses objetos são colhidos nos próprios lugares. Uma força que vem de um Espírito os lança no espaço e eles caem no lugar designado pelo Espírito. Quando nesses lugares não existem pedras, carvão, etc., podem muito facilmente ser por ele fabricados.
OBSERVAÇÃO: Na Revista de abril de 1859 demos a teoria completa dessas espécies de fenômenos, nos artigos: Mobiliário de Além-túmulo e Pneumatografia ou escrita direta.
6. ─ Acreditais que seria útil evocar esse Espírito para lhe pedir explicações?
─ Evocai-o, se o quiserdes. Mas é um Espírito inferior, que só dará respostas muito insignificantes.
(SOCIEDADE, 29 DE JUNHO DE 1860)
1. Evocação do Espírito perturbador da Rua des Noyers.
─ Por que me chamais? Quereis pedradas, hein? Então seria um salve-se quem puder, malgrado o vosso ar de bravura.
2. ─ Se nos atirasses pedras aqui não teríamos medo. Pergunto se tu positivamente podes arremessá-las em nós.
─ Aqui talvez não pudesse. Tendes um guarda que vela por vós.
3. ─ Havia alguém na Rua des Noyers que servia de auxiliar para te facilitar as brincadeiras de mau gosto com os habitantes da casa?
─ Certamente. Encontrei um bom instrumento, e nenhum Espírito douto, sábio e importante para me impedir. Porque sou alegre, às vezes gosto de me divertir.
4. ─ Quem te servia de instrumento?
─ Uma criada.
5. ─ Ela te servia inconscientemente?
─ Oh! Sim. Coitada! Ela era a mais apavorada.
6. ─ Entre as pessoas aqui presentes existe alguma capaz de te ajudar a produzir tais efeitos?
─ Eu bem podia encontrar uma, se ela quisesse prestar-se a isto, mas não para manobrar aqui.
7. ─ Podes apontá-la?
─ Sim! Lá, à direita daquele que fala. Ele usa óculos.
OBSERVAÇÃO: Com efeito, o Espírito designa um membro da Sociedade que é um pouco médium escrevente, mas nunca teve qualquer manifestação física. É provável que seja nova brincadeira do Espírito.
8. ─ Agias com objetivo hostil?
─ Eu? Eu não tinha nenhum propósito hostil, mas os homens, que de tudo se apoderam, tirarão sua vantagem.
9. ─ Que entendes por isto? Não te compreendemos.
─ Eu procurava divertir-me, mas vós estudais a coisa e tendes mais um fato para mostrar que nós existimos.
10. ─ Onde apanhaste os objetos que atiravas?
─ São muito comuns. Encontrei-os no pátio e nos jardins vizinhos.
11. ─ Encontraste todos ou fabricaste alguns?
─ Nada criei, nada compus.
12. ─ Se não os tivesses encontrado poderias fabricá-los?
─ Teria sido mais difícil, mas, a rigor, a gente mistura matéria e isto faz um todo qualquer.
13. ─ Agora, dize-nos, como os arremessaste?
─ Ah! Isto é mais difícil de dizer. Eu me servi da natureza elétrica daquela
moça, adicionada à minha, menos material. Assim pudemos juntos transportar
aqueles diversos materiais. (Vide a nota que segue à evocação).
14. ─ Penso que poderias dar-nos algumas informações sobre tua pessoa. Para
começar, dize-nos se morreste há muito tempo?
─ Há muito tempo. Há bem uns cinquenta anos.
15. ─ Que eras em vida?
─ Não era grande coisa. Catava molambos pelo bairro, e diziam-me tolices, porque gostava muito do licor vermelho do bom Noé. Assim, eu queria enxotá-los a todos.
16. ─ Foi por ti mesmo e de boa vontade que respondeste às nossas perguntas?
─ Eu tinha um orientador.
17. ─ Quem é este orientador?
─ O vosso bom rei Luís.
OBSERVAÇÃO: Esta pergunta foi motivada pela natureza de certas respostas, que pareceram ultrapassar o alcance do Espírito, pelo fundo das ideias e pela forma da linguagem. Nada de admirar tenha ele sido ajudado por um Espírito mais esclarecido, que queria aproveitar a ocasião para instruir-nos. Isto é um fato muito comum. Mas há uma notável particularidade nesta circunstância, é que a influência do outro Espírito se fez sentir sobre a própria letra: a das respostas onde interferiu é mais regular e corrente; a das outras é angulosa, grossa, irregular, por vezes pouco legível e mostra um caráter diverso.
18. ─ Que fazes agora? Ocupas-te com o teu futuro?
─ Ainda não; ando errante. Pensam tão pouco em mim aí na Terra, que ninguém ora por mim. Assim, não sou ajudado e não trabalho.
19. ─ Qual era o teu nome em vida?
─ Jeannet.
20. ─ Pois bem! Nós oraremos por ti. Dize-nos se nossa evocação te deu prazer ou te contrariou?
─ Antes prazer, porque sois boa gente, alegres, embora um pouco austeros. Tudo bem. Vós me ouvistes e estou contente.
JEANNET
OBSERVAÇÃO: A explicação dada pelo Espírito à pergunta 13 está perfeitamente conforme à que nos tem sido dada, há tempos, por outros Espíritos, quanto à maneira por que agem para fazer movimentos e translação das mesas e de outros objetos inertes. Quando nos damos conta dessa teoria, o fenômeno parece muito simples. Compreende-se que decorre de uma lei da Natureza e não é mais maravilhoso que qualquer outro efeito cuja causa desconhecemos. Essa teoria se acha perfeitamente desenvolvida nos números da Revista de maio e de junho de 1858. Diariamente a experiência nos confirma a utilidade das teorias que temos dadodos fenômenos espíritas. Uma explicação racional desses fenômenos deveria resultar em maior compreensão da sua possibilidade e, além disso, em convicção. Eis por que muitas pessoas que não se tinham convencido pelos mais extraordinários fatos, o foram desde que puderam saber o porquê e o como. Acrescentemos que para muitos, estas explicações fazem desaparecer o maravilhoso, colocando os fatos, por mais insólitos que sejam, na ordem das coisas naturais. Isto significa que não se trata de derrogações das leis da Natureza e que com isso o diabo nada tem a ver. Quando ocorrem espontaneamente, como na Rua des Noyers, quase sempre oferecem ocasião de fazer algum bem e de aliviar alguma alma.
Sabe-se que em 1849, fatos semelhantes ocorreram na Rua des Grès, perto da Sorbonne. O Sr. Lerible, que foi a vítima, acaba de dar um desmentido pelos jornais que o acusaram de fraude, arrastando-o aos tribunais. Os considerandos de sua declaração merecem ser analisados:
“Ano de 1860, nove de julho, a requerimento do Sr. Lerible, antigo negociante de carvão e lenha, proprietário, residente em Paris, na Rua de Grenelle-Saint- Germain, 64, com domicílio em sua propriedade;
Eu, Aubin Jules Demonchy, meirinho do tribunal civil do Sena, sediado em Paris, e residente na Rua des Fossés Saint-Victor, 43, abaixo assinado, notifico ao Sr. Garat, gerente do jornal la Patrie, nos escritórios do dito jornal, sitos em Paris, Rua du Croissant, onde, falando a uma senhora de confiança, assim declarei:
Ter que inserir, em resposta ao artigo publicado a 27 de junho último, nos Fatos do jornal la Patrie a citação seguinte, feita pelo requerente ao gerente do jornal le Droit, com a oferta que faz o requerente de pagar os gastos da publicação, caso sua resposta exceda o número de linhas que a lei autoriza a publicar:
“No ano de 1860, a cinco de julho, a requerimento do Sr. Lerible, antigo negociante de carvão e lenha, proprietário, residente em Paris, na Rua de Grenelle-Saint-Germain, 64, com domicílio em sua propriedade;
“Eu, Aubin-Jules Demonchy, meirinho do Tribunal Civil do Sena, sediado em Paris e residente na Rua des Fossés-Saint-Victor, 43;
“Citei o Sr. François, em seu nome e como gerente do jornal le Droit, nos escritórios do dito jornal, sito em Paris, na Praça Dauphine, onde estava e dirigindolhe a palavra...
“A comparecer no dia 8 de agosto de 1860 à audiência perante os senhores presidentes e juízes componentes da sexta câmara do tribunal de primeira instânciado Sena, estatuindo em matéria de polícia correcional, no Palácio da Justiça de Paris, às dez horas da manhã, para:
“Visto que em seu número de 26 de junho último e por ocasião dos fatos que se teriam passado numa casa da Rua des Noyers, o jornal le Droit diz que fatos análogos teriam ocorrido em 1847, numa casa da Rua des Grès;
“Que o redator acompanha suas observações de explicações tendentes a fazer crer que os ataques de que a casa da Rua des Grès era objeto em 1847 emanavam do próprio inquilino, que os praticava de má fé, a fim de obter, por meio de uma especulação desonesta, a rescisão do contrato de aluguel.
“Visto que os fatos referidos pelo jornal le Droit realmente ocorreram, não em 1847, mas em 1849, na casa que o requerente ocupava nessa época, na Rua des Grès;
“Que embora o nome do requerente não seja indicado no artigo do le Droit senão por uma inicial, a designação exata de sua indústria, a dos locais que habitava e, enfim, a indicação de que os fatos de que se trata foram colhidos pelo próprio jornal, assinalam suficientemente o requerente como autor das manobras atribuídas à pessoa que ocupava a casa da Rua des Grès;
“Visto que essas imputações são de natureza a atingir a honra e a consideração do requerente;
“Que são tanto mais repreensíveis, visto que nenhuma verificação dos acontecimentos de que se trata teria sido realizada e que, a exemplo daqueles de que parece ter sido teatro a Rua des Noyers, esses acontecimentos ficaram sem explicação;
“Que, por outro lado, o requerente era proprietário, desde 1847, da casa e do terreno que ocupava na Rua des Grès;
“Que a suposição a que chegou o diretor do le Droit não tem qualquer razão de ser e jamais foi formulada;
“Visto que os termos empregados pelo jornal le Droit constituem uma difamação e estão sujeitos às penas estabelecidas por lei;
“Que todos os jornais de Paris se aproveitaram do artigo do le Droit e que a honra do requerente sofreu pelo fato dessa publicidade uma ofensa cuja reparação lhe é devida;
“Por estes motivos:
“Submete-se o Sr. François à aplicação das penas estabelecidas por lei e decidese condená-lo pessoalmente a apagar ao requerente os danos e perdas que este se reserva para reclamar em audiência, os quais declara, no momento, empregar em favor dos pobres, e ainda que o julgamento a ser feito seja inserto em todos os jornais de Paris, por conta do citado, e se considera condenado às custas, sob todas as reservas;
“E, para que o citado não o ignore, eu lhe deixei em domicílio, nos termos acima mencionados, cópia do presente.
“Custas: 3,55 francos.
“Assinado: DEMONCHY
“Registrado em Paris, a 6 de julho de 1860. Recebidos: 2,20 francos.
“Assinado: DUPERRON
“Declarando ao citado que se não satisfizer à presente intimação, o requerente recorrerá às vias de direito;
“E, a domicílio e falando como acima, eu lhe deixei esta cópia.
“Custas: 9,10 francos.
“DEMONCHY”