Julho
Há fatos sobre os quais temos uma opinião pessoal. No caso de que se trata não temos nenhuma, e se nos inclinássemos para um lado, seria de preferência para a negativa, até prova em contrário.
Baseamo-nos no fato de que o tempo é relativo; de que ele não pode ser apreciado senão em termos comparativos e em relação aos pontos de referência obtidos na revolução dos outros, e esses termos variam conforme os mundos, porque fora dos mundos o tempo não existe. Não há parâmetro para medir o infinito. Assim, parece que não pode haver uma lei universal de concordância para a data dos acontecimentos, porque o cômputo da duração varia conforme os mundos, a menos que haja, nesse caso particular, uma lei para cada mundo, afeta à sua organização, como há uma para a duração da vida de seus habitantes.
Seguramente, se tal lei existe, um dia ela será reconhecida. O Espiritismo, que assimila todas as verdades, quando são constatadas, não irá repelir essa. Mas como, até o presente, essa lei não é atestada nem por um número suficiente de fatos nem por uma demonstração categórica, com ela devemos preocupar-nos muito pouco, porquanto ela só nos interessa de maneira muito indireta. Não dissimulamos a importância dessa lei, se é que ela existe, mas como as portas do Espiritismo estarão sempre abertas a todas as ideias progressivas, a todas as aquisições da inteligência, ele se ocupa com as necessidades do momento, sem receio de ser ultrapassado pelas conquistas do futuro.
Tendo sido esta questão submetida aos Espíritos num grupo muito sério do interior, e por isto mesmo geralmente bem assistido, foi respondido:
“Há, certamente, no conjunto dos fenômenos morais, como nos fenômenos físicos, relações baseadas nos números. A lei da concordância das datas não é uma quimera; é uma das que vos serão reveladas mais tarde e vos darão a chave das coisas que vos parecem anomalias, porque, acreditai, a Natureza não tem caprichos; ela marcha sempre com precisão e passo seguro. Além do mais, essa lei não é exatamente como imaginais; para compreendê-la na sua razão de ser, no seu princípio e na sua utilidade, necessitais adquirir ideias que ainda não tendes, e que virão com o seu tempo. Por ora, esse conhecimento seria prematuro, razão pela qual não vos é dado. Portanto, seria inútil insistir. Limitai-vos a recolher os fatos; observai sem nada concluir, para não vos confundirdes. Deus sabe dar aos homens o alimento intelectual à medida que eles estão em condições de absorvê-lo. Trabalhai sobretudo por vosso adiantamento moral, que é o essencial, porque é por esse caminho que merecereis possuir novas luzes.”
Nós somos dessa opinião. Pensamos, até, que haveria mais inconvenientes do que vantagens em vulgarizar prematuramente uma crença que, nas mãos da ignorância, poderia degenerar em abuso e práticas supersticiosas, por falta do contrapeso de uma teoria racional.
O princípio da concordância das datas é, pois, inteiramente hipotético; mas se nada é ainda permitido afirmar a esse respeito, a experiência demonstra que, na Natureza, muitas coisas estão subordinadas a leis numéricas, suscetíveis do mais rigoroso cálculo. Este fato, de uma grande importância, talvez possa um dia lançar a luz sobre a primeira questão. É assim, por exemplo, que as chances do acaso são submetidas, em seu conjunto, a uma periodicidade de admirável precisão; a maior parte das combinações químicas para a formação dos corpos compostos dão-se em proporções definidas, e isto significa que é necessário um determinado número de moléculas de cada um dos corpos elementares, e que uma molécula a mais ou a menos muda completamente a Natureza do corpo composto (vide A Gênese, Cap. X, itens 7 e seguintes); a cristalização se opera sob ângulos de uma abertura constante; em Astronomia, os movimentos e as forças seguem progressões de um rigor matemático, e a mecânica celeste é tão exata quanto a mecânica terrestre; dá-se o mesmo com a reflexão dos raios luminosos, calóricos e sonoros; é em cálculos positivos que são estabelecidas as possibilidades de sobrevivência e os riscos de mortalidade nos seguros.
É certo, pois, que os números estão na Natureza e que leis numéricas regem a maior parte dos fenômenos de ordem física. Dá-se o mesmo nos fenômenos de ordem moral e metafísica? É o que seria presunção afirmar, sem dados mais precisos do que aqueles que possuímos. Esta questão, aliás, levanta outras que têm a sua importância, e sobre as quais julgamos útil apresentar algumas observações de um ponto de vista geral.
Levando-se em consideração que uma lei numérica rege os nascimentos e a mortalidade das criaturas, não poderia dar-se o mesmo, porém numa escala mais vasta, para as individualidades coletivas, tais como as raças, os povos, as cidades etc.? As fases de sua marcha ascendente, de sua decadência e de seu fim; as revoluções que marcam as etapas do progresso da Humanidade, não estariam sujeitas a uma certa periodicidade? Quanto às unidades numéricas para o cômputo dos períodos da história da Humanidade, se não são os dias nem os anos nem os séculos, poderiam eles ter por base as gerações, como alguns fatos tenderiam a fazêlo supor.
Aí não está um sistema; é ainda menos uma teoria, mas uma simples hipótese, uma ideia baseada numa probabilidade, e que um dia poderá servir de ponto de partida para ideias mais positivas.
Mas, perguntarão, se os acontecimentos que decidem a sorte da Humanidade, de uma nação, de uma tribo, têm seus prazos regulados por uma lei numérica, é a consagração da fatalidade e, então, em que se torna o livre-arbítrio do homem? Então o Espiritismo estaria errado quando diz que nada é fatal e que o homem é o senhor absoluto de suas ações e de sua sorte?
Para responder a esta objeção, há que tomar a questão de mais alto. Digamos, para começar, que o Espiritismo jamais negou a fatalidade de certas coisas, e que, ao contrário, sempre a reconheceu. Mas ele diz que essa fatalidade não entrava o livrearbítrio. Eis o que é fácil de demonstrar.
Todas as leis que regem o conjunto dos fenômenos da Natureza têm consequências necessariamente fatais, isto é, inevitáveis, e essa fatalidade é indispensável à manutenção da harmonia universal. O homem, que sofre essas consequências, está, pois, sob alguns aspectos, submetido à fatalidade, em tudo quanto não depende de sua iniciativa. Assim, por exemplo, ele deve morrer fatalmente: é a lei comum, à qual ele não pode subtrair-se e, em virtude dessa lei, ele pode morrer em qualquer idade, quando chegar a sua hora; entretanto, se ele voluntariamente apressa a sua morte, pelo suicídio ou por seus excessos, age em virtude de seu livre-arbítrio, pois ninguém pode constrangê-lo a praticar esse ato. Ele deve comer para viver: é a fatalidade; mas se ele come além do necessário, pratica um ato de liberdade.
Em sua cela, o prisioneiro é livre de mover-se à vontade, no espaço que lhe é concedido, mas as paredes que não pode transpor são para ele a fatalidade que lhe restringe a liberdade. A disciplina é para o soldado uma fatalidade, pois o obriga a atos independentes de sua vontade, mas ele não é menos livre em suas ações pessoais, pelas quais é responsável. Assim é com o homem na Natureza. A Natureza tem as suas leis fatais, que lhe opõem uma barreira, mas aquém da qual ele pode mover-se à vontade.
Por que Deus não deu ao homem uma liberdade completa? Porque Deus é como um pai previdente, que limita a liberdade de seus filhos ao nível do seu raciocínio e do uso que dela podem fazer. Se os homens já se servem tão mal da que lhes é concedida, se não sabem governar-se a si mesmos, que seria se as leis da Natureza estivessem à sua disposição, e se não lhes opusessem um freio salutar?
O homem pode, pois, ser livre em suas ações, a despeito da fatalidade que preside o conjunto; ele é livre numa certa medida, no limite necessário para lhe deixar a responsabilidade de seus atos. Se, em virtude dessa liberdade, ele perturba a harmonia por um mal que faz; se ele põe um obstáculo na marcha providencial das coisas, ele é o primeiro a sofrer as consequências disso, e como as leis da Natureza são mais fortes do que ele, acaba sendo arrastado na corrente; então ele sente a necessidade de retornar ao caminho do bem, e tudo retoma o seu equilíbrio, de sorte que a volta ao bem é ainda um ato livre, posto que provocado, nas não imposto pela fatalidade.
O impulso dado pelas leis da Natureza, bem como os limites que elas estabelecem, são sempre bons, porque a Natureza é obra da sabedoria divina. A resistência a essas leis é um ato de liberdade e essa resistência sempre atrai o mal. Sendo o homem livre para observar ou infringir essas leis, no que se refere à sua pessoa, é, pois, livre de fazer o bem ou o mal. Se ele pudesse ser fatalmente levado a fazer o mal, e não podendo essa fatalidade vir senão de um poder a ele superior, Deus seria o primeiro a infringir as suas leis.
A quem não ocorreu muitas vezes dizer: “Se eu não tivesse agido como agi em tal circunstância, não estaria na posição em que estou; se eu tivesse que recomeçar, agiria de outra maneira?” Não é reconhecer que tinha liberdade para fazer ounão fazer? Que estava livre para fazer melhor, se se apresentasse outra oportunidade? Ora, Deus, que é mais sábio do que ele, prevendo os erros nos quais ele pode cair e o mau uso que ele poderia fazer de sua liberdade, dá-lhe indefinidamente a possibilidade de recomeçar, pela sucessão de suas existências corporais, e ele recomeçará até que, instruído pela experiência, não mais erre o caminho.
O homem pode, portanto, conforme a sua vontade, apressar ou retardar o termo de suas provas, e é nisto que consiste a liberdade. Agradeçamos a Deus não nos ter fechado para sempre o caminho da felicidade, decidindo a nossa sorte definitiva após uma existência efêmera, notoriamente insuficiente para chegar ao topo da escada do progresso, e de nos haver dado, pela própria fatalidade da reencarnação, os meios de progredir incessantemente, renovando as provas nas quais fracassamos.
A fatalidade é absoluta para as leis que regem a matéria, porque a matéria é cega; ela não existe para o Espírito que é, ele próprio, chamado a reagir sobre a matéria, em virtude de sua liberdade. Se as doutrinas materialistas fossem verdadeiras, elas seriam a mais formal consagração da fatalidade, porque se o homem fosse apenas matéria, não poderia ter iniciativa. Ora, se lhe concedeis iniciativa, seja no que for, é que ele é livre, e se é livre, é que tem em si algo além da matéria. Sendo o materialismo a negação do princípio espiritual, é, por isso mesmo, a negação da liberdade. E ─ contradição bizarra! ─ os materialistas, aqueles mesmos que proclamam o dogma da fatalidade, são os primeiros a dela tirar partido; a constituir-se senhores de sua liberdade; a reivindicá-la como um direito, na sua mais absoluta plenitude, junto aos que a restringem, e isto sem suspeitar que significa reclamar o privilégio do Espírito e não da matéria.
Aqui se apresenta outra questão. A fatalidade e a liberdade são dois princípios que parecem excluir-se. A liberdade da ação individual é compatível com a fatalidade das leis que regem o conjunto, e essa ação não vem perturbar a harmonia? Alguns exemplos tomados dos mais vulgares fenômenos da ordem material deixarão evidente a solução do problema.
Dissemos que as chances do acaso se equilibram com uma surpreendente regularidade. Com efeito, há um resultado muito conhecido no jogo do vermelho e preto que, a despeito da irregularidade de saída a cada lançamento, as cores são em número igual ao cabo de certo número de jogadas; isto significa que em cem jogadas haverá cinquenta vermelhos e cinquenta pretos; em mil, quinhentos de uma e quinhentos de outra, com uma diferença de poucas unidades. Dá-se o mesmo com os números pares e ímpares e com todas as chances ditas duplas. Se, em lugar de duas cores, houver três, haverá um terço de cada; se forem quatro, um quarto etc. Muitas vezes a mesma cor sai em séries de duas, três, quatro, cinco, seis vezes seguidas; num certo número de jogadas haverá tantas séries de duas vermelhas quanto de duas pretas; tantas de três vermelhas quanto de três pretas, e assim por diante. No entanto, as jogadas de duas serão 50% menos numerosa do que as de uma; as de três, um terço das de uma; as de quatro, um quarto etc.
Nos dados, como estes têm seis faces, jogando-o sessenta vezes, chegar-se-á a dez vezes um ponto, dez vezes dois pontos, dez vezes três pontos e assim com os outros.
Na antiga loteria da França havia noventa números colocados numa roleta. Sorteava-se cinco de cada vez. Nos registros de vários anos constatou-se que cada número havia saído na proporção de um nonagésimo e cada dezena na proporção de um nono.
A proporção é tanto mais exata quanto mais considerável o número de jogadas. Em dez ou vinte jogadas, por exemplo, pode ser muito desigual, mas o equilíbrio se estabelece à medida que aumenta o número, e isto com uma regularidade matemática. Sendo isto um fato constante, é bem evidente que uma lei numérica preside a essa repartição, quando abandonada a si mesma, e que nada vem forçá-la ou entravá-la. O que se chama acaso está, pois, submetido a uma lei matemática, isto é, não há acaso. A irregularidade caprichosa que se manifesta em cada jogada, ou num pequeno número de jogadas, não impede a lei de seguir o seu curso, de onde pode-se concluir que há nessa repartição uma verdadeira fatalidade, mas essa fatalidade que preside ao conjunto é nula, ou pelo menos inapreciável, para cada jogada isolada.
Estendemo-nos um pouco no exemplo dos jogos, porque é um dos mais chocantes e dos mais fáceis de verificar, pela possibilidade de multiplicar os fatos à vontade, em curto espaço de tempo. E como a lei ressalta do conjunto dos fatos, foi essa multiplicidade que permitiu reconhecê-la, sem o que é provável que ainda a ignorássemos.
A mesma lei pôde ser observada com precisão nas chances de mortalidade. A morte, que parece ferir indistintamente e às cegas, não segue menos, em seu conjunto, uma marcha regular e constante, segundo a idade. Sabemos perfeitamente que de mil indivíduos de todas as idades, em um ano morrerão tantos de um a dez anos, tantos de dez a vinte, tantos de vinte a trinta, e assim por diante; ou então que após um período de dez anos, o número dos sobreviventes será de tantos de um a dez anos, tantos de dez a vinte etc. Causas acidentais de mortalidade podem momentaneamente perturbar esta ordem, como no jogo a saída de uma longa série da mesma cor rompe o equilíbrio. No entanto, se em vez de um período de dez anos ou de um número de mil indivíduos, estendermos a observação a cinquenta anos e a cem mil indivíduos, encontraremos o equilíbrio restabelecido.
De acordo com isto, é permitido supor que todas as eventualidades que parecem efeito do acaso, na vida individual, bem como na dos povos e da Humanidade, são regidas por leis numéricas, e que o que falta para reconhecê-las é poder abarcar de um golpe de vista uma massa bastante considerável de fatos, e um lapso de tempo suficiente.
Pela mesma razão, nada haveria de absolutamente impossível que o conjunto dos fatos de ordem moral e metafísica fosse igualmente subordinado a uma lei numérica, cujos elementos e as bases, até agora, nos são totalmente desconhecidos. Em todo o caso, vê-se, pelo que precede, que essa lei, ou, se preferirem, essa fatalidade do conjunto, de modo algum eliminaria o livre-arbítrio. É o que nos tínhamos proposto demonstrar. Não se exercendo o livre-arbítrio senão sobre pontos isolados de detalhe, ele não entravaria o cumprimento da lei geral, assim como a irregularidade da saída de cada número não entravaria a repartição proporcional desses mesmos números sobre um certo número de jogadas. O homem exerce o seu livre-arbítrio na pequena esfera de sua ação individual; esta pequena esfera pode estar em desalinho, sem que isto a impeça de gravitar no conjunto segundo a lei comum, assim como os pequenos remoinhos causados nas águas de um rio, pelos peixes que se agitam, não impedem a massa das águas de seguir o curso forçado que lhes imprime a lei de gravitação.
Tendo o homem o livre-arbítrio, em nada entra a fatalidade em suas ações individuais; quanto aos acontecimentos da vida privada, que por vezes parecem atingi-lo fatalmente, eles têm duas causas bem distintas: uns são consequência direta de sua conduta na existência presente; muitas pessoas são infelizes, doentes, enfermas por sua culpa; muitos acidentes são resultado da imprevidência; ele não pode queixar-se senão de si mesmo, e não da fatalidade ou, como se diz, de sua má estrela. Os outros são inteiramente independentes da vida presente e parecem, por isto mesmo, devidos a uma certa fatalidade. Mas, ainda aqui o Espiritismo nos demonstra que essa fatalidade é apenas aparente, e que certas posições penosas da vida têm sua razão de ser na pluralidade das existências. O Espírito as escolheu voluntariamente na erraticidade, antes de sua encarnação, como provações para o seu adiantamento. Elas são, pois, produto do livre-arbítrio, e não da fatalidade. Se algumas vezes são impostas como expiação, por uma vontade superior, é ainda por força das más ações voluntariamente cometidas pelo homem em existência precedente, e não como consequência de uma lei fatal, porquanto ele poderia tê-las evitado, agindo de outro modo.
A fatalidade é o freio imposto ao homem por uma vontade superior a ele, e mais sábia que ele, em tudo o que não é deixado à sua iniciativa. Mas ela jamais é um entrave ao exercício de seu livre-arbítrio, no que toca às suas ações pessoais. Ela não pode impor-lhe nem o mal nem o bem. Desculpar uma ação má qualquer pela fatalidade ou, como se diz muitas vezes, pelo destino, seria abdicar a capacidade de discernimento que Deus lhe deu para pesar o pró e o contra, a oportunidade ou a falta de oportunidade, as vantagens e os inconvenientes de cada coisa. Se um acontecimento está no destino de um homem, ele realizar-se-á, a despeito de sua vontade, e será sempre para o seu bem, mas as circunstâncias da realização dependem do emprego que ele faça de seu livre-arbítrio, e muitas vezes ele pode reverter em seu prejuízo o que deveria ser um bem, se agir com imprevidência, e se se deixar arrastar pelas suas paixões. Ele se engana mais ainda se toma o seu desejo ou os desvios de sua imaginação por seu destino. (Vide O Evangelho segundo o Espiritismo, Cap. V, itens l a 11).
Tais são as reflexões que nos sugeriram os três ou quatro pequenos cálculos de concordância de datas que nos foram apresentados, e sobre os quais nos pediram conselho. Elas eram necessárias para demonstrar que em semelhante matéria, de alguns fatos idênticos não se podia concluir por uma aplicação geral. Aproveitamolos para resolver, por novos argumentos, a grave questão da fatalidade e do livrearbítrio.
Pelo fato do Espiritismo assimilar todas as ideias progressistas, não se segue que ele se faça campeão cego de todas as concepções novas, por mais sedutoras que se apresentem à primeira vista, com o risco de mais tarde receber um desmentido da experiência e de se dar ao ridículo de haver patrocinado uma obra inviável. Se ele não se pronuncia abertamente sobre certas questões controvertidas, não é, como poderiam supor, para manejar os dois partidos, mas por prudência, e para não se adiantar levianamente num terreno ainda não suficientemente explorado. Eis por que ele não aceita as ideias novas, mesmo as que lhe parecem justas, senão inicialmente, sob reserva, para efeito de futura ponderação, e de maneira definitiva apenas quando chegaram ao estado de verdades reconhecidas.
A questão da geração espontânea se enquadra neste caso. Pessoalmente é para nós uma convicção, e se tivéssemos que tratá-la numa obra comum, tê-la-íamos resolvido pela afirmativa; mas numa obra constitutiva da Doutrina Espírita, as opiniões individuais não podem fazer lei. Não sendo a doutrina baseada em probabilidades, não poderíamos resolver uma questão de tal importância tão logo tenha surgido, e que ainda está em litígio entre os especialistas. Afirmar a coisa sem restrição, teria sido comprometer a Doutrina prematuramente, o que não fazemos nunca, nem mesmo para fazer prevalecerem as nossas simpatias.
O que, até aqui, deu força ao Espiritismo; o que dele fez uma ciência positiva e de futuro, é que ele jamais avançou levianamente; que não se constituiu sobre nenhum sistema preconcebido; que não estabeleceu nenhum princípio absoluto sobre a opinião pessoal, nem de um homem, nem de um Espírito, mas somente depois que esse princípio recebeu a consagração da experiência e de uma demonstração rigorosa, resolvendo todas as dificuldades da questão.
Quando formulamos um princípio, portanto, é que previamente nos asseguramos do assentimento da maioria dos homens e dos Espíritos. Eis por que não temos tido decepções. Esta é, também, a razão pela qual nenhuma das bases que constituem a Doutrina, e isto há cerca de doze anos, recebeu desmentido oficial; os princípios de O Livro dos Espíritos foram sucessivamente desenvolvidos e completados, mas nenhum caiu em desuso, e nossos últimos escritos não estão, em nenhum ponto, em contradição com os primeiros, a despeito do tempo decorrido e das novas observações que foram feitas.
Certamente assim não teria sido se tivéssemos cedido às sugestões dos que incessantemente nos gritavam para ir mais depressa; se tivéssemos esposado todas as teorias que eclodiam de todos os lados. Por outro lado, se tivéssemos escutado os que nos pediam que fôssemos mais lentamente, ainda estaríamos observando as mesas girantes. Vamos em frente quando sentimos que o momento é propício e vemos que os espíritos estão maduros para aceitar uma ideia nova; detemo-nos quando vemos que o terreno não é bastante sólido para aí fincar o pé. Com a nossa aparente lentidão e nossa circunspecção muito meticulosa para o gosto de certas pessoas, avançamos mais do que se nos tivéssemos posto a correr, porque evitamos tropeçar no caminho. Não tendo motivo para lamentar a marcha que temos seguido até agora, não a alteraremos.
Dito isto, completaremos com algumas observações o que dissemos em A Gênese sobre a geração espontânea. Sendo a Revista um terreno de estudo e de elaboração de princípios, nela dando claramente a nossa opinião, não tememos empenhar a responsabilidade da doutrina, porque a doutrina a adotará se ela for justa e a rejeitará se for falsa.
É um fato hoje cientificamente demonstrado que a vida orgânica nem sempre existiu na Terra, e que ela aí teve um começo. A Geologia permite seguir o seu desenvolvimento gradual. Os primeiros seres do reino vegetal e do reino animal que apareceram, então, devem ter-se formado sem procriação, e pertencer às classes inferiores, como o constatam as observações geológicas.
À medida que se reuniram os elementos dispersos, as primeiras combinações formaram corpos exclusivamente inorgânicos, isto é, as pedras, as águas e os minerais de toda espécie. Quando esses mesmos elementos se modificaram pela ação do fluido vital ─ que não é o princípio inteligente ─ eles formaram corpos dotados de vitalidade, de uma organização constante e regular, cada um na sua espécie. Ora, assim como a cristalização da matéria bruta não ocorre senão quando uma causa acidental não vem opor-se ao arranjo simétrico das moléculas, os corpos organizados se formam desde que as circunstâncias favoráveis de temperatura, de umidade, de repouso ou de movimento, e uma espécie de fermentação permitem que as moléculas da matéria, vivificadas pelo fluido vital, se reúnam. É o que se vê em todos os germes em que a vitalidade pode ficar latente durante anos e séculos, e se manifestar num dado momento, quando as circunstâncias são propícias.
Os seres não procriados formam, pois, o primeiro escalão dos seres orgânicos, e provavelmente um dia serão contados na classificação científica. Quanto às espécies que se propagam por procriação, uma opinião que não é nova, mas que hoje se generaliza sob a égide da Ciência, é que os primeiros tipos de cada espécie são o produto da espécie imediatamente inferior. Assim estabeleceu-se uma cadeia ininterrupta, desde o musgo e o líquen até o carvalho, e depois o zoófito, a minhoca e o oução até o homem. Sem dúvida entre a minhoca e o homem, se considerarmos apenas os dois pontos extremos, há uma diferença que parece um abismo; mas quando se aproximam todos os elos intermediários, encontramos uma filiação sem solução de continuidade.
Os partidários desta teoria que, repetimo-lo, tende a prevalecer, e à qual nos ligamos sem reserva, estão longe de ser todos espiritualistas, e ainda menos espíritas. Não considerando senão a matéria, eles fazem abstração do princípio espiritual ou inteligente. Essa questão nada prejulga, pois, sobre a filiação desse princípio da animalidade na Humanidade; é uma tese da qual não vamos tratar hoje, mas que já se debate em certas escolas filosóficas não materialistas. Não se trata, pois, senão do envoltório carnal, distinto do Espírito, como a casa o é de seu habitante. Então o corpo do homem pode ser perfeitamente uma modificação do corpo do macaco, sem que se siga que o seu espírito seja o mesmo que o do macaco (A Gênese, Cap. XI, nº. 15).
A questão que se liga à formação deste envoltório não deixa de ser muito importante, primeiro porque resolve um sério problema científico, porquanto destrói preconceitos de longa data arraigados pela ignorância, e depois porque os que a estudam exclusivamente chocar-se-ão com dificuldades insuperáveis quando quiserem dar-se conta de todos os efeitos, absolutamente como se quisessem explicar os efeitos da telegrafia sem a eletricidade; eles não encontrarão a solução destas dificuldades senão na ação do princípio espiritual que deverão admitir, afinal de contas, para sair do impasse em que estarão empenhados, sob pena de deixar sua teoria incompleta.
Deixemos, pois, o materialismo estudar as propriedades da matéria; esse estudo é indispensável, e isso será feito, efetivamente: o espiritualismo não terá mais que completar o trabalho no que lhe concerne. Aceitemos suas descobertas e não nos inquietemos com suas conclusões absolutas, porque uma vez demonstrada a sua incapacidade para tudo resolver, as necessidades de uma lógica rigorosa concluirão forçosamente pela espiritualidade; e sendo a própria espiritualidade geral incapaz de resolver os inúmeros problemas da vida presente e da vida futura, será encontrada a única chave possível nos princípios mais positivos do Espiritismo. Já vemos uma porção de homens chegarem por si mesmos às consequências do Espiritismo, sem conhecê-lo, uns começando pela reencarnação, outros pelo perispírito. Eles fazem como Pascal, que descobriu os elementos da geometria sem estudo prévio, e sem suspeitar que aquilo que ele acreditava ter descoberto era uma obra concluída. Dia virá em que os pensadores sérios, estudando esta doutrina com a atenção que ela comporta, ficarão muito surpresos de nela encontrar o que procuravam, e proclamarão abertamente um trabalho cuja existência eles não suspeitavam.
É assim que tudo se encadeia no mundo; da matéria bruta saíram os seres orgânicos, cada vez mais aperfeiçoados; do materialismo sairão, pela força das coisas e por dedução lógica, o espiritualismo geral, depois o Espiritismo, que não é outra coisa senão o espiritualismo estabelecido com precisão, apoiado nos fatos.
O que se passou na origem do mundo para a formação dos primeiros seres orgânicos acontece em nossos dias, pela via do que se chama a geração espontânea? Eis a questão. De nossa parte, não hesitamos em pronunciar-nos pela afirmativa.
Os partidários e os adversários confrontam reciprocamente experiências que deram resultados contrários; mas estes últimos esquecem que o fenômeno não se pode produzir senão em condições adequadas de temperatura e aeração; buscando obtê-las fora dessas condições, eles devem necessariamente fracassar.
Sabe-se, por exemplo, que para a eclosão artificial dos ovos, há necessidade de uma temperatura regular determinada, e certas precauções minuciosas especiais. Quem negasse tal eclosão porque não a tivesse obtido com alguns graus a mais ou a menos, e sem as precauções necessárias, estaria no mesmo caso daquele que não obtém a geração espontânea num meio impróprio. Parece-nos, pois, que se essa geração forçosamente se produziu nas primeiras idades do globo, não há razão para que ela não se produza em nossa época, se as condições forem as mesmas, como não há razão para que não se formem calcários, óxidos, ácidos e sais, como no primeiro período.
Está hoje constatado que os pêlos do mofo constituem uma vegetação que nasce sobre a matéria orgânica que atingiu um certo estado de fermentação. O mofo nos parece ser o primeiro, ou um dos primeiros tipos da vegetação espontânea, e essa vegetação primitiva, que persiste, revestindo formas diversas, conforme o meio e as circunstâncias, nos dá os liquens, os musgos, etc. Querem um exemplo mais direto? Que são os cabelos, a barba e os pêlos do corpo dos animais, senão uma vegetação espontânea?
A matéria orgânica animalizada, isto é, contendo uma certa porção de azoto, dá origem a vermes que têm todos os caracteres de uma geração espontânea. Quando o homem ou um animal qualquer está vivo, a atividade da circulação do sangue e o funcionamento incessante dos órgãos mantêm uma temperatura e um movimento molecular que impedem os elementos constitutivos dessa geração de se formar e se reunir. Quando o animal está morto, a parada da circulação e do movimento, o abaixamento da temperatura num certo limite, produzem a fermentação pútrida e, em consequência, a formação de novos compostos químicos. É então que se veem todos os tecidos subitamente invadidos por miríades de vermes que neles se repastam, sem dúvida para apressar a sua destruição. Como seriam procriados, se antes não havia traços deles?
Objetarão, sem dúvida, que são os ovos das moscas depositados na carne morta. Mas isto nada provaria, porque os ovos das moscas são depositados na superfície, e não no interior dos tecidos, e porque a carne, posta ao abrigo das moscas, ao cabo de um certo tempo não está menos pútrida e cheia de vermes; muitas vezes eles são vistos invadindo os corpos antes da morte, quando há um começo parcial de decomposição pútrida, notadamente nas feridas gangrenosas.
Certas espécies de vermes se formam durante a vida, mesmo num estado de saúde aparente, sobretudo nos indivíduos linfáticos, cujo sangue é pobre, e que não têm a superabundância de vida que se nota em outros. São as lombrigas ou vermes intestinais; as tênias ou solitárias que por vezes atingem sessenta metros de comprimento, e se reproduzem por fragmentos, como os pólipos e certas plantas; os dragonneaux, peculiares à raça negra e a certos climas, de um comprimento de trinta a trinta e cinco centímetros, finos como um fio de linha, e que saem através da pele, pelas pústulas; os ascarídeos, os tricocéfalos, etc. Muitas vezes eles formam massas consideráveis a ponto de obstruir o canal digestivo, sobem ao estômago e até à boca; atravessam os tecidos, alojam-se nas cavidades ou em volta das vísceras, enovelamse como ninhos de lagarta e causam graves desordens na economia. Sua formação bem podia ser devida a uma geração espontânea, tendo sua fonte num estado patológico especial, na alteração dos tecidos, no enfraquecimento dos princípios vitais e em secreções mórbidas. Poderia dar-se o mesmo com os vermes do queijo, o ácaro da sarna, e numa porção de animálculos que podem nascer no ar, na água e nos corpos orgânicos.
É verdade que se poderia supor que os germes dos vermes intestinais são introduzidos na economia com o ar que se respira e com os alimentos, e que aí se desenvolvam. Mas, então, surge outra dificuldade: perguntar-se-ia por que a mesma causa não produz o mesmo efeito sobre todos; por que nem todo mundo tem solitária, nem mesmo lombrigas, quando a alimentação e a respiração em todos produzem idênticos efeitos fisiológicos. Ademais, esta explicação não seria aplicável aos vermes da decomposição pútrida que vêm após a morte, nem aos do queijo e tantos outros. Até prova em contrário, somos levados a considerar como sendo, ao menos em parte, um produto da geração espontânea, do mesmo modo que os zoófitos e certos pólipos.
A diferença de sexos que se reconheceu, ou pensou reconhecer em certos vermes intestinais, notadamente no tricocéfalo, não seria uma objeção concludente, visto que eles não deixam de pertencer à ordem dos animais inferiores, e, por isso mesmo, primitivos. Ora, como a diferença dos sexos deve ter tido um começo, nada se oporia a que nascessem espontaneamente macho ou fêmea.
Aí não estão, portanto, hipóteses, mas que parecem vir em apoio ao princípio. Até onde ele estende a sua aplicação? É o que não se poderia dizer. O que se pode afirmar é que ela deve ser circunscrita aos vegetais e aos animais de organização mais simples, e não nos parece duvidoso que assistamos a uma criação incessante.
Assim, essa pobre escolinha, tão ridicularizada, tão atacada, que caridosamente pretendiam mandar em massa para o hospício; sobre a qual diziam que bastava soprar para que ela desaparecesse; que vinte vezes declararam morta e para sempre sepultada; à qual não há mais fino escritor hostil que não se tenha gabado de lhe haver dado o golpe de misericórdia, mas concordando, com estupefação, que ela invadia o mundo e todas as classes da Sociedade; da qual quiseram, a todo custo, fazer uma religião, gratificando-a com templos e sacerdotes grandes e pequenos que ela jamais viu, ei-la de repente transformada em partido. Por esta qualificação, o Sr. Genteur, relator do Senado, não lhe deu o seu verdadeiro caráter, mas a realçou; deu-lhe uma classe, um lugar, pondo-a em relevo, porque a ideia de partido implica a de uma certo poder, de uma opinião bastante importante, bastante ativa e bastante expandida para representar um papel, e com a qual é preciso contar.
Por sua natureza e por seus princípios, o Espiritismo é essencialmente pacífico; é uma ideia que se infiltra sem ruído, e se encontra numerosos aderentes, é que agrada; ela jamais fez propaganda ou quaisquer exibições; forte pelas leis naturais, nas quais se apoia, vendo-se crescer sem esforços nem abalos, não vai de encontro a ninguém; não violenta nenhuma consciência; diz o que é e espera que a ele venham. Todo o alarido feito ao seu redor é obra de seus adversários; eles o atacaram, ele teve que se defender, mas sempre o fez com calma, moderação e só pelo raciocínio; jamais se afastou da dignidade que é própria de toda causa que tem consciência de sua força moral; jamais usou de represálias, pagando injúria por injúria, maus procedimentos por maus procedimentos. Convenhamos que este não é o caráter ordinário dos partidos, agitados por natureza, fomentando a agitação, e aos quais tudo se justifica para atingir os seus fins. Mas, já que lhe dão este nome, ele o aceita, certo de que não o desonrará por qualquer excesso, porque repudiaria quem quer que dele se prevalecesse para suscitar a menor perturbação.
O Espiritismo seguia a sua rota sem provocar qualquer manifestação pública, mas aproveitando a publicidade que lhe faziam os seus adversários. Quanto mais a sua crítica era escarnecedora, acerba e virulenta, mais ela excitava a curiosidade dos que não o conheciam e que, para saber como comportar-se diante dessa assim chamada nova excentricidade, iam simplesmente informar-se na fonte, isto é, nas obras especiais; estudavam-no e verificavam que era completamente diverso do que tinham ouvido dizer. É um fato notório que as declamações furibundas, os anátemas e as perseguições ajudaram poderosamente a sua propagação, porque, em vez de desviá-lo, provocaram o seu exame, mesmo que fosse apenas pela atração do fruto proibido.
As massas têm a sua lógica; elas dizem que se uma coisa nada fosse, dela não falariam, e medem a sua importância precisamente pela violência dos ataques de que ela é objeto e do pavor que causa aos seus antagonistas.
Instruídos pela experiência, certos órgãos de publicidade se abstinham de falar dele, bem ou mal, evitando mesmo pronunciar-lhe o nome, para não lhe dar repercussão, limitando-se a endereçar-lhe, de tempos em tempos, alguns ditos ofensivos ocasionais e como à sorrelfa, quando uma ocasião o punha inevitavelmente em evidência. Alguns também guardaram silêncio, porque a ideia tinha penetrado em suas fileiras, e com ela, senão talvez a convicção, pelo menos hesitação.
A imprensa em geral, portanto, se calava sobre o Espiritismo, quando uma circunstância que não podia ser efeito do acaso a colocou na contingência de falar dele. E quem provocou o incidente? Sempre os adversários da ideia, que ainda dessa vez se equivocaram, produzindo um efeito totalmente contrário ao que esperavam. Para dar mais repercussão ao seu ataque, eles conduzem-no desajeitadamente, não no terreno de uma folha sem caráter oficial e cujo número de leitores é diminuto, mas por via de petições à própria tribuna do Senado, onde ela é objeto de uma discussão e de onde saiu a expressão partido espírita. Ora, graças aos jornais de todas as cores, obrigados a noticiar o debate, a existência desse partido foi revelada instantaneamente a toda a Europa e fora dela.
É verdade que um membro da ilustre assembleia disse que não havia senão bobos que fossem espíritas, ao que o presidente respondeu que os bobos também podiam formar partido. Ninguém ignora que hoje existem milhões de espíritas e que altas notabilidades simpatizam com suas crenças; então, a gente pode admirar-se que um epíteto tão pouco cortês e tão generalizado tenha saído daquele ambiente, dirigido a uma parte considerável da população, sem que o autor tenha imaginado a sua repercussão?
Aliás, os próprios jornais se encarregaram de desmentir tal qualificação, certamente não por benevolência, mas, que importa! O jornal la Liberté, entre outros, que aparentemente não quer que tenhamos a liberdade de sermos espíritas, como temos a liberdade de ser judeu, protestante, sansimonista ou livre-pensador, publicou, em seu número de 13 de junho, um artigo sob a assinatura de Liévin, do qual eis um resumo:
“O Sr. Genteur, comissário do governo, revelou ao Senado a existência de um partido que não conhecíamos, e que, ao que parece, contribui como os outros, no limite de suas forças, para abalar as instituições do império. Já a sua influência se havia feito sentir o ano passado, e o partido espírita ─ foi o nome que lhe deu o Sr. Genteur ─ tinha obtido do Senado, sem dúvida graças à sutileza dos meios de que dispõe, a remessa ao governo da famosa petição de Saint-Etienne, na qual eram denunciadas, como se lembram, não as tendências materialistas da Escola de Medicina, mas as tendências filosóficas da biblioteca da comuna. Até aqui nós tínhamos atribuído ao partido da intolerância a honra desse sucesso, e o considerávamos como uma consolação para ele, por seu último revés, mas parece que nos tínhamos enganado e que a petição de Saint-Etienne não passava de uma manobra desse partido espírita, cujo poder oculto parece querer exercer-se mais particularmente em detrimento das bibliotecas.
“Assim, segunda-feira, o Senado recebia uma nova petição, na qual o partido espírita, mais uma vez mostrando a sua cara, denunciava as tendências da biblioteca de Oullins (Ródano). Mas desta vez a venerável assembleia, posta em guarda pelas revelações do Sr. Genteur, frustrou, por uma ordem do dia unânime, os cálculos dos espíritas. Apenas o Sr. Nisard se deixou mais ou menos apanhar por essa astúcia de guerra, e de boa-fé estendeu a mão a esses pérfidos inimigos. Ele deu-lhes o apoio de um parecer em que, por sua vez, assinalava os perigos dos maus livros. Felizmente o equívoco do honrado senador não foi partilhado, e os espíritas, desmascarados e confusos, foram reconduzidos como mereciam.”
Um outro jornal, a Revue Politique Hebdomadaire, de 13 de junho, assim começa um artigo sobre o mesmo assunto:
“Ainda não conhecíamos todos os nossos perigos. Não eram, pois, suficientes o partido legitimista, o partido orleanista, o partido republicano, o partido socialista, o partido comunista e o partido vermelho, sem contar o partido liberal, que os resume a todos, se se acredita no Constitucional? Era mesmo sob o segundo império, cuja pretensão é dissolver todos os partidos, que um novo partido devia nascer, crescer e ameaçar a sociedade francesa, o partido espírita? Sim, o partido espírita! Foi o Sr. Genteur, conselheiro de Estado, que o descobriu e o denunciou em pleno Senado!”
Dificilmente chegaremos a compreender que um partido que só se componha de bobos possa fazer o Estado correr sérios perigos. Temê-lo seria permitir que acreditem que se tem medo dos bobos. Soltando um grito de alarme em face do mundo, prova-se que o partido espírita é alguma coisa. Não tendo podido abafá-lo sob o ridículo, tentam apresentá-lo como um perigo para a tranquilidade pública. Ora, qual será o inevitável resultado desta nova tática? Um exame muito mais sério e mais aprofundado, que fará com que seja ainda mais realçado o seu perigo; quererão conhecer as doutrinas deste partido, seus princípios, sua palavra de ordem, suas filiações.Se o ridículo lançado sobre o Espiritismo, como crença, despertou a curiosidade, será muito diferente quando ele for apresentado como um partido temível; todos ficarão interessados em saber o que ele quer, para onde ele conduz: é tudo o que ele pede; agindo em plena luz, não tendo qualquer instrução secreta, fora do que é publicado para uso de todo mundo, ele não teme nenhuma investigação, bem certo, ao contrário, de ganhar por ser conhecido, e que quem quer que o perscrute com imparcialidade, verá em seu código moral uma poderosa garantia de ordem e de segurança. Um partido, porquanto existe um partido, que inscreve em sua bandeira: Fora da caridade não há salvação, indica bem claramente suas tendências, para que ninguém tenha razão para temê-lo. Ademais, a autoridade, cuja vigilância é conhecida, não pode ignorar os princípios de uma doutrina que não se esconde. A ela não falta gente para lhe dar conta do que se diz e do que se faz nas reuniões espíritas, e ela bem saberia chamar à ordem os que dela se afastassem.
É surpreendente que homens que fazem profissão de liberalismo, que reclamam em coro e aos gritos a liberdade, que a querem absoluta para as suas ideias, seus escritos, suas reuniões, que estigmatizam todos os atos de intolerância, entendam proscrevê-la para o Espiritismo.
Mas vede a que inconsequências conduz a cegueira! O debate que ocorreu no Senado foi provocado por duas petições: uma, do ano passado, contra a biblioteca de Saint-Etienne; outra deste ano, contra a biblioteca de Oullins, assinadas por alguns habitantes daquelas cidades, e que reclamavam contra a introdução de certas obras, naquelas bibliotecas, entre as quais figuravam as obras espíritas.
Ora! O autor do artigo do jornal la Liberté, que sem dúvida examinou a questão um tanto levianamente, imagina que a reclamação emana do partido espírita, e conclui que este levou uma cacetada pela ordem do dia pronunciada contra a petição de Oullins. Eis, pois, esse partido tão perigoso facilmente abatido, e que requer que suas próprias obras sejam excluídas! Então seria verdadeiramente o partido dos bobos. Ademais, esse estranho equívoco nada tem de surpreendente, pois o autor declara, de início, que não conhecia esse partido, o que não o impediu de declará-lo capaz de abalar as instituições do império.
Longe de se inquietarem com esses incidentes, os espíritas devem rejubilar-se, pois essa manifestação hostil não podia produzir-se em circunstâncias mais favoráveis, e a Doutrina assim receberá, na certa, um novo e salutar impulso, como tem acontecido em todos os levantes de que ela tem sido objeto. Quanto mais repercussão têm esses ataques, mais proveitosos eles são. Dia virá em que se transformarão em aprovações abertas.
O jornal le Siècle, de 18 de junho, também publicou o seu artigo sobre o partido espírita. Todos aí notarão um espírito de moderação, que contrasta com os dois outros acima mencionados. Reproduzimo-lo na integra:
“Quem disse que não há nada de novo sob o do Sol? O céptico que assim falava não suspeitava que um dia a imaginação de um conselheiro de Estado faria, em pleno Senado, a descoberta do partido espírita. Nós já contávamos com alguns partidos na França, e Deus sabe se os ministros oradores laboram em erro ao enumerar os perigos que pode causar essa divisão dos espíritos! Há o partido legitimista, o partido orleanista, o partido republicano, o partido socialista, o partido comunista, o partido clerical, etc.
“Ao Sr. Genteur a lista não pareceu bastante comprida. Ele acaba de denunciar à vigilância dos veneráveis pais da política que estão assentados no Palácio Luxemburgo, a existência do partido espírita. A esta revelação inesperada, um arrepio percorreu a assembleia. Os defensores das duas morais, com o Sr. Nisard à frente, estremeceram.
“A despeito do zelo desses inumeráveis funcionários do império francês, o que está ameaçado por um novo partido? ─ Na verdade, é para desesperar a ordem pública. Como este inimigo, invisível até agora para o próprio Sr. Genteur, pôde subtrair-se a todas as vistas? Há nisto um mistério que o senhor conselheiro de Estado, se o penetrar, terá a bondade de nos ajudar a compreender. Pessoas oficialmente informadas afirmam que o partido espírita ocultava o exército de seus representantes, os Espíritos batedores, atrás dos livros das bibliotecas de SaintEtienne e de Oullins.
“Eis-nos, pois, de volta aos belos tempos das histórias para boi dormir, das mesas girantes e dos tripés indiscretos!
“Embora o Espiritismo e seu primeiro apóstolo, o Sr. Delage, o mais suave dos pregadores, não tenham ainda convencido muita gente, contudo eles chegaram a constituir um partido. Isto, pelo menos, se diz no Senado, e não seremos nós que jamais nos permitiremos suspeitar da exatidão do que se afirma num lugar tão elevado.
“A influência oculta do partido recentemente assinalado se fez sentir até na última discussão do Senado, onde o Sr. Désiré Nisard, primeiro na qualificação, mostrou-se forte contra os reacionários. Um tal papel cabia de direito ao homem que foi, desde a sua saída da escola normal, um dos mais ativos agentes das ideias retrógradas.
“Depois disto, é de admirar ouvir o honrado senador invocar o arbítrio para justificar as medidas restritivas tomadas a propósito da escolha de livros da biblioteca de Oullins? ‘Esses estabelecimentos populares, disse o Sr. Nisard, são fundados por associações; elas se encontram, pois, sob o disposto no Art. 291 do Código Penal e, por consequência, à mercê do ministro do interior. Ele usou, usa e usará desse poder ditatorial.’
“Deixamos ao partido espírita e ao seu Cristóvão Colombo, o Sr. Genteur, conselheiro de Estado, o trabalho de interrogar os Espíritos reveladores, a fim de que nos digam o que o Senado espera obter impedindo os cidadãos de organizar livremente as bibliotecas populares, como se pratica na Inglaterra.”
ANATOLE DE LA FORGE.
O Espiritismo em toda a parte
O JORNAL SIÈCLE ─ PARIS SONÂMBULA“A mais elevada forma de sonambulismo é, sem contradita, o Espiritismo, que aspira passar ao estado de ciência. Ele possui uma literatura já rica, e notadamente os livros do Sr. Allan Kardec têm autoridade na matéria.”
“Espiritismo é a correspondência das almas entre si. Segundo os adeptos dessa crença, um ser invisível se põe em comunicação com outro, chamado médium, que goza de uma organização particular que o torna apto a receber o pensamento dos que viveram e que escreve, quer por um impulso mecânico inconsciente dado à mão, quer por uma transmissão direta à inteligência dos médiuns.”
“Não, a morte não existe. É o instante de repouso após a jornada feita e terminada a tarefa; depois, é o despertar para uma nova obra, mais útil e maior que a que se acaba de realizar.”
“Partimos, levando conosco a lembrança dos conhecimentos aqui adquiridos; o mundo aonde iremos nos dará os seus, e nós os gruparemos todos em feixe, para deles formar o progresso.”
“É pela sucessão das gerações que a Humanidade progride, a cada vez dando mais um passo para a luz, porque elas chegam animadas por almas sempre nativamente puras, depois que voltaram a Deus, e ficam impregnadas dos progressos que atravessaram.”
“Por força das conquistas definitivamente asseguradas, a própria Terra que habitamos merecerá subir na escala dos mundos. Acontecerá um novo cataclismo; certas essências vegetais, certas espécies animais, inferiores ou malfazejas, desaparecerão, como outras desapareceram no passado, para dar lugar a criações mais perfeitas e nós, por nossa vez, nos tornaremos um mundo no qual os seres já experimentados virão buscar um maior desenvolvimento. De nós depende acelerar, pelos nossos esforços, o advento desse período mais feliz. Nossos mortos bemamados vêm ajudar-nos nessa tarefa difícil.”
“Como se vê, essas crenças, sérias ou não, não deixam de ter uma certa grandeza. O materialismo e o ateísmo, que o sentimento humano repele com todas as suas energias, não passam de uma inevitável reação contra as ideias, dificilmente admissíveis pela razão, sobre Deus, a natureza e o destino das almas. Alargando a questão, o Espiritismo reacende nos corações a fé prestes a extinguir-se.”
Eis a descrição que dela nos deu o Siècle, em seu número de 11 de fevereiro de 1868:
“Cornélio é um alquimista que se ocupa especialmente da transmigração das almas. Tudo quanto lhe contam a propósito ele escuta com ouvidos ávidos, como se a coisa tivesse acontecido. Ora, ele tem uma filha que não esperou sua licença para arranjar um pretendente. Não; mas ele recusa o consentimento. Então, como fazer para triunfar sobre a sua resistência? Uma ideia: o apaixonado lhe narra que sua filha, antes de ser sua filha, há muito tempo, era um jogador, dado a aventuras e frequentador de ruelas. Nessa mesma época, ele, o apaixonado, era uma jovem encantadora que foi enganada pelo aventureiro. Os papéis se inverteram e ele lhe pede para devolver a sua antiga honra. ‘Ah! Vós me dizeis tanto!’, responde o velho doutor convencido. E eis como um casamento a mais se realiza ante o público que tantas vezes se encarrega de substituir o senhor prefeito.
“A música é alegre como o assunto que a inspirou. Notou-se mais particularmente a serenata, as quadras de Cornélio, o duo burlesco e o final, escritos simples e facilmente.”
Como se vê, o fundo do enredo repousa, aqui, não só no princípio da reencarnação, mas também na mudança de sexo.
Os assuntos dramáticos se esgotam e muitas vezes os autores ficam embaraçados para sair dos caminhos repisados; a ideia da reencarnação lhes vai fornecer, em profusão, situações novas para todos os gêneros; aberto o caminho, é provável que todos os teatros em breve tenham sua peça para a reencarnação.
O Teatro Francês apresentou, no fim de maio, uma peça na qual a alma representa o papel principal. É O Galo de Mycille, pelos Srs. Trianon e Eugène Nyon, da qual eis o tema principal.
Mycille é um jovem sapateiro remendão de Atenas; em frente à sua tenda mora um jovem magistrado, o arconte Eucrates, numa deliciosa casa de mármore. O pobre sapateiro inveja de Eucrates as suas riquezas: sua mulher, a bela Cloé, sua cozinha, seus numerosos escravos. O opulento arconte, envelhecido precocemente, gotoso, inveja em Mycille sua boa aparência, sua saúde, o amor desinteressado que lhe dedica uma linda escrava, Dóris. Mycille tem um galo que a jovem Dóris lhe deu e que, com o seu canto matinal, desperta o arconte. Este ordena aos escravos que batam no sapateiro, caso não faça o seu galo calar-se. Por sua vez, o sapateiro quer bater no galo, mas nesse instante o animal se metamorfoseia em homem: é o filósofo Pitágoras, cuja alma veio animar o corpo do galo, segundo a sua doutrina da transmigração. Momentaneamente ele tomou a sua forma humana, para esclarecer Mycille sobre a tolice da inveja que ele tem da posição de Eucrates. Não podendo persuadi-lo, lhe diz: “Quero dar-te o meio de te esclareceres por tua própria experiência. Apanha esta pena que fizeste cair de meu próprio corpo de galo; introdu-la na fechadura da porta de Eucrates; logo a porta abrir-se-á; tua alma passará para o corpo do arconte e, reciprocamente, a alma do arconte passará para o teu corpo. Entretanto, antes de fazer qualquer coisa, aconselho-te a refletir bem. Então Pitágoras desapareceu. Mycille reflete, mas a sede do ouro o empolga e, solicitado por diversos incidentes, decide-se e a metamorfose se opera. Eis, pois, o sapateiro transformado no rico arconte, mas doente e gotoso, e o arconte feito sapateiro. Essa transformação ocasiona uma porção de complicações cômicas, em consequência das quais cada um, descontente com a sua nova posição, retoma a que tinha antes.
Como se vê, a peça é uma nova edição da história do sapateiro e do financista, já explorada sob tantas formas. O que a caracteriza é que, em vez de ser o sapateiro em pessoa, corpo e alma, que toma o lugar do financista, são as duas almas que mudam de corpo. A ideia é nova, original, e os autores a exploraram muito espirituosamente. Mas não é absolutamente tomada a ideia espírita, como se havia dito; ela é tirada de um diálogo de Luciano: O sonho e o galo. Não falamos deste senão para destacar o erro dos que confundem o princípio da reencarnação com a transmigração das almas, ou metempsicose.
A peça de Cornélio, ao contrário, é inteiramente compatível com a ideia espírita, embora a pretensa reencarnação do jovem e da moça não passem de uma invenção de sua parte, para chegar aos seus fins, ao passo que esta dela se afasta completamente. Para começar, o Espiritismo jamais admitiu a ideia da alma humana retrogradando na animalidade, pois seria a negação da lei do progresso. Em segundo lugar, a alma só deixa o corpo com a morte, e quando, depois de algum tempo passado na erraticidade, ela recomeça uma nova existência, é passando pelas fases ordinárias da vida: o nascimento, a infância etc., e não por efeito de uma metamorfose ou substituição instantânea, que só se vê nos contos de fadas, que não são o evangelho do Espiritismo, digam o que disserem os críticos, que disso não entendem muito.
Contudo, se bem que os dados sejam falsos na sua aplicação, eles não deixam de ser baseados no princípio da individualidade e da independência da alma; é a alma distinta do corpo e a possibilidade de reviver num outro envoltório posto em ação, ideia com a qual sempre é útil familiarizar a opinião geral. A impressão que daí fica não é perdida para o futuro, e é mais salutar que a das peças onde se põe em cena a impudência das paixões.
Alexandre dumas monte-cristo
“Escutai, Valentim. Jamais sentistes por alguém uma dessas simpatias irresistíveis que fazem que, em vendo uma pessoa pela primeira vez, julgais conhecê-la de longa data e vos perguntais onde e quando o vistes? E embora não vos podendo recordar nem do lugar nem do tempo, chegais a crer que foi num mundo anterior ao nosso, e que essa simpatia não é senão uma lembrança que desperta?” (Monte Cristo, 3ª parte, Cap. XVIII, O recinto da luzerna).
“Jamais ousastes vos elevar num voo às esferas superiores que Deus povoou de seres invisíveis e excepcionais. ─ E admitis, senhor, que existam esferas superiores e que os seres superiores e excepcionais se misturem conosco? ─ Por que não? Acaso vedes o ar que respirais, e sem o qual não poderíeis viver? ─ Então nós não vemos estes seres de que falais. ─ Sim, vós os vedes quando Deus permite que se materializem...”(Monte-Cristo, 3ª parte, Cap. IX, Ideologia).
“E eu, senhor (Villefort), eu vos digo que não é assim como pensais. Esta noite eu dormi um sono horrível, porque me via de certo modo dormir, como se a minha alma já estivesse planando acima de meu corpo; meus olhos, que eu me esforçava por abrir, se fechavam a despeito da minha vontade; e, contudo... com meus olhos fechados, eu vi, no mesmo lugar onde estais, entrar sem ruído uma forma branca.” (Monte Cristo, 4ª parte, Cap. XIII, Senhora Mairan).
“Uma hora antes de expirar, ele me disse: Meu pai, a fé de nenhum homem pode ser mais viva que a minha, porque eu vi e ouvi falar uma alma separada de seu corpo.” (François Picaut, continuação do Monte Cristo).
Nestes pensamentos não há senão uma crítica muito pequena a fazer. É a qualificação de excepcionais dada aos seres invisíveis que nos rodeiam. Esses seres nada têm de excepcional, porquanto são as almas dos homens, e todos os homens, sem exceção, devem passar por esse estado. Fora disto, não poderíamos dizer que estas ideias foram tiradas textualmente da Doutrina?
Dissemos, num artigo acima, que as pesquisas da Ciência, mesmo em vista de um estudo exclusivamente material, conduziriam ao espiritualismo, pela impossibilidade de explicar certos efeitos apenas com o auxílio das leis da matéria; por outro lado, temos repetido muitas vezes que na catalepsia, na letargia, na anestesia[2] pelo clorofórmio ou outras substâncias, no sonambulismo natural, no êxtase e em certos estados patológicos, a alma se revela por uma ação independente o organismo, e dá, por seu isolamento, a prova patente de sua existência. Não falamos nem do magnetismo, nem do sonambulismo artificial, nem da dupla vista, nem das manifestações espíritas que a ciência oficial ainda não reconheceu, mas dos fenômenos sobre os quais ela pode fazer experiências todos os dias.
A Ciência procurou a alma com o escalpelo e o microscópio, no cérebro e nos gânglios nervosos, e não a encontrou; a análise dessas substâncias não lhe deu senão oxigênio, hidrogênio, azoto e carbono, de onde ela concluiu que a alma não era distinta da matéria. Se ela não a encontra, a razão é muito simples: ela faz da alma uma ideia fixa preconcebida; imagina-a dotada das propriedades da matéria tangível; é sob essa forma que a procura, e naturalmente não poderia reconhecê-la, ainda mesmo quando a tivesse sob suas vistas. Considerando que certos órgãos são os instrumentos das manifestações do pensamento, e que destruindo esses órgãos, ela para a manifestação, ela tira a consequência muito pouco filosófica que são os órgãos que pensam, absolutamente como se uma pessoa que tivesse cortado o fio telegráfico e interrompido a transmissão de um despacho, pretendesse ter destruído aquele que o enviava.
O aparelho telegráfico nos oferece, por comparação, uma imagem exata do funcionamento da alma no organismo. Suponhamos que um indivíduo receba um telegrama e que, ignorando a sua procedência, se entregasse às seguintes pesquisas. Ele segue o fio transmissor até o seu ponto de partida; percorrendo o caminho ele procura o seu expedidor ao longo do fio e não o encontra; o fio o conduz a Paris, ao telégrafo, ao aparelho. Diz ele: “Foi daqui que o telegrama partiu, não tenho dúvida; é um fato materialmente demonstrado”. Ele explora o aparelho, desmonta-o, desloca-o para procurar seu expedidor, e ali não encontrando senão madeira, cobre e uma roda, diz: “Tendo em vista que o telegrama partiu daqui e aqui não encontro ninguém, foi esse mecanismo que concebeu o despacho; isto me é demonstrado não menos materialmente.” Nesta altura, um outro indivíduo, colocando-se ao lado do aparelho, põe-se a repetir o telegrama palavra por palavra, e lhe diz: “Como podeis supor, vós, um homem inteligente, que este mecanismo composto de matéria inerte, destrutível, tenha podido conceber o pensamento do telegrama que recebestes, conhecer o fato que esse telegrama vos comunicou? Se a matéria tivesse a faculdade de pensar, por que o ferro, a pedra, a madeira não teriam ideias? Se essa faculdade depende da ordem e do arranjo das partes, por que o homem não construiria autômatos pensantes? Jamais vos veio ao espírito crer que essas bonecas que dizem: papá, mamã, tenham consciência do que fazem? Não admirastes, ao contrário, a inteligência do autor desse mecanismo engenhoso?”
Aqui, o novo interlocutor é a alma, que concebe o pensamento; o aparelho é o cérebro, onde ela se concentra e se formula; a eletricidade é o fluido diretamente impregnado do pensamento e encarregado de levá-lo para longe, como o ar leva o som; os fios metálicos são os cordões nervosos destinados à transmissão do fluido; o primeiro indivíduo é o sábio à procura da alma, que segue os cordões nervosos, à procura no cérebro, e não o encontrando aí, conclui que é o cérebro que pensa; não escuta a voz que lhe diz: “Tu te obstinas em me procurar dentro, enquanto eu estou fora; olha para o lado e me verás; os nervos, o cérebro e os fluidos não pensam mais que o fio metálico, o aparelho telegráfico e a eletricidade; eles não passam de instrumentos da manifestação do pensamento, engenhosamente combinados pelo inventor da máquina humana.”
Em todos os tempos, fenômenos espontâneos muito frequentes, tais como a catalepsia, a letargia, o sonambulismo natural e o êxtase mostraram a alma agindo fora do organismo, mas a Ciência os desdenhou desse ponto de vista. Ora, eis que uma nova descoberta, a anestesia pelo clorofórmio, de uma incontestável utilidade nas operações cirúrgicas, e cujos efeitos, por isso mesmo, se é forçado a estudar, diariamente torna a Ciência testemunha desse fenômeno, pondo, por assim dizer, a nu a alma do paciente; é a voz que grita: “Olha para fora, e não para dentro, e me verás”; mas há criaturas que têm olhos e não veem, ouvidos e não escutam.
Entre os numerosos fatos desse gênero, aconteceu o seguinte, na prática do Sr. Velpeau:
“Uma senhora que não tinha dado qualquer sinal de dor enquanto eu a desembaraçava de um volumoso tumor, despertou sorrindo e me disse: “Bem sei que terminou, deixai-me voltar completamente e vou explicar isto... Não senti absolutamente nada, logo acrescentou ela, mas eis como soube que estava operada. Em meu sono, fui fazer uma visita a uma senhora minha conhecida, para conversar sobre uma criança pobre que devíamos colocar. Enquanto conversávamos, a senhora me disse: “Credes estar neste momento em minha casa, não é? Ora, minha cara amiga, estais completamente enganada, porque estais em vossa casa, em vossa cama, onde vos fazem uma operação agora mesmo.” Longe de me alarmar com sua conversa, respondi-lhe naturalmente: Ah! Se é assim, eu vos peço permissão para prolongar um pouco a minha visita, a fim de que tudo esteja acabado quando voltar para casa. E eis como, abrindo os olhos, antes mesmo de estar inteiramente desperta, pude anunciar-vos que estava operada.”
A cloroformização oferece milhares de exemplos tão concludentes quanto este.
Comunicando este fato e outros análogos à Academia das Ciências, a 4 de março de 1850, o Sr. Velpeau exclamou: “Que fonte fecunda para a Psicologia e para a Fisiologia são estes atos que chegam a separar o espírito da matéria, ou a inteligência do corpo!”
Então o Sr. Velpeau viu funcionar a alma fora do organismo; pôde constatar a sua existência por sua independência; ele ouviu a voz que lhe dizia: Estou fora e não dentro. Por que, então, fez profissão de fé materialista? Ele disse depois, quando estava no mundo dos Espíritos: “Orgulho do sábio, que não queria desmentir-se.” Contudo, não temeu voltar atrás em certas opiniões científicas erradas que tinha professado publicamente. Em seu Tratado de Mediana Operatória, publicado em 1839, tomo I, página 32, ele diz:
“Evitar a dor nas operações é uma quimera que hoje não é permitido perseguir. Instrumento cortante e dor, em medicina operatória, são duas palavras que não se apresentam uma sem a outra ao espírito dos doentes, e cuja associação há que se admitir necessariamente.”
O clorofórmio veio dar-lhe um desmentido sobre esse ponto, como sobre a questão da alma. Por que, então, aceitou um e não o outro? Mistério das fraquezas humanas!
Em suas lições, o Sr. Velpeau havia dito aos seus alunos: “Senhores, dizem-vos que não encontrareis a alma na ponta do vosso escalpelo, e têm razão, porque ela aí não está, e em vão aí a procureis, assim como eu mesmo fiz; mas estudai as manifestações inteligentes nos fenômenos da anestesia e tereis a prova irrefutável de sua existência; foi aí que a encontrei e todo observador de boa-fé a encontrará. Em presença de semelhantes fatos, não mais é possível negá-la, porquanto pode-se constatar a sua ação independente do organismo, e se pode isolá-la, por assim dizer, à vontade.” Falando assim, ele não teria feito senão completar o pensamento antes emitido ante a Academia das Ciências. Com tal linguagem, apoiada na autoridade de seu nome, ele teria feito uma revolução na arte médica. Foi uma glória que repudiou e que hoje lamenta amargamente, mas que outros herdarão.
Essa é a tese que acaba de ser defendida com notável talento pelo Sr. Ramon de la Sagra, na obra que constitui o objeto deste artigo. O autor aí descreve com método e clareza, do ponto de vista da ciência pura, que lhe é familiar, todas as fases da anestesia pelo clorofórmio, pelo éter, pelo curare[3] e outros agentes, segundo suas próprias observações e as dos mais acreditados autores, tais como Velpeau, Gerdy, Bouisson, Flourens, Simonin, etc. A parte técnica e científica aí ocupa largo espaço, mas isto era necessário para uma demonstração rigorosa. Além disto, contém numerosos fatos, onde colhemos o que relatamos acima. Dela tomamos igualmente as seguintes conclusões:
“Considerando-se que é um fato perfeitamente constatado pelos fenômenos anestésicos, que o éter enfraquece a vitalidade dos nervos condutores das impressões dos sentidos, mas deixando livres as faculdades intelectuais, também se toma incontestável que essas faculdades não dependem essencialmente dos órgãos do sistema nervoso. Ora, como os órgãos dos sentidos, que produzem as impressões, não agem senão pelos nervos, é claro que estando estes paralisados, todo o organismo da vida animal, da vida de relação, fica aniquilado para essas faculdades intelectuais que, nada obstante, funcionam. É forçoso, portanto, confessar que a sua existência, ou melhor, a sua realidade, não depende essencialmente do organismo, e que elas procedem, por conseguinte, de um princípio diverso dele, independente dele, que pode funcionar sem ele e fora dele.
“Eis, pois, a realidade da alma rigorosamente demonstrada, incontestavelmente estabelecida, sem que nenhuma observação fisiológica possa prejudicá-la. Podemos ver sair desta conclusão, como que jatos de luz que clareiam horizontes longínquos, que entretanto não abordaremos, porque esse gênero de estudos escapa do quadro que nos traçamos.
“O ponto de vista psicológico, sob o qual acabamos de apresentar os efeitos das substâncias anestésicas sobre a economia animal, e as consequências que daí deduzimos em favor da realidade da existência da alma, devem sugerir a esperança de que um método semelhante, aplicado ao estudo de outros fenômenos análogos da vida, poderia conduzir ao mesmo resultado.
“Nenhuma dedução seria mais justa, porque os efeitos fisiológicos e psicológicos que se mostram durante a embriaguês alcoólica, o delírio patológico, o sono natural e magnético, o êxtase e até a loucura, oferecem a maior semelhança, em muitos pontos, com os efeitos das substâncias anestésicas que acabamos de estudar nesta obra. Uma tal concordância de diversos fenômenos, procedendo de causas diferentes, em favor de uma conclusão idêntica, não nos deve surpreender. Ela não é senão a consequência do que provamos: a realidade da existência de uma essência distinta da matéria no organismo humano, e à qual são devolvidas as funções intelectuais que a matéria sozinha não poderia jamais preencher.
“Seria aqui o lugar de examinar uma outra questão, de fazer uma incursão no domínio do magnetismo animal, que sustenta a permanência das faculdades sensoriais fora dos sentidos, isto é, da visão, da audição, do paladar, do olfato, durante a paralisia completa dos órgãos que no estado normal proporcionam essas impressões. Mas esta doutrina, cuja verdade não queremos defender nem contestar, não é admitida pela ciência fisiológica, o que é suficiente para que a eliminemos de nossas pesquisas atuais.”
Este último parágrafo prova que o autor fez, para a demonstração da alma, o que o Sr. Flammarion fez para a de Deus, isto é, que ele se colocou no próprio terreno da ciência experimental e que ele quis tirar só dos fatos oficialmente reconhecidos, a prova de sua tese. Ele nos promete outra obra, que não pode deixar de ser de grande interesse, na qual serão estudados, do mesmo ponto de vista, os diversos fenômenos que ele apenas menciona, pois se limitou aos da anestesia pelo clorofórmio.
Certamente essa prova não é necessária para firmar a convicção dos espíritas, nem dos espiritualistas; mas, depois de Deus, sendo a existência da alma a base fundamental do Espiritismo, devemos considerar como eminentemente útil à Doutrina toda obra que tenda a lhe demonstrar os princípios fundamentais. Ora, a ação da alma, abstração feita do organismo, uma vez provada, é um ponto de partida que, como a pluralidade das existências e o perispírito, pouco a pouco, e por dedução lógica, conduz a todas as consequências do Espiritismo.
Com efeito, o exemplo relatado acima é do mais puro Espiritismo, à primeira vista, o que o Sr. Velpeau nem suspeitava, ao publicá-lo, e se tivéssemos podido citar todos, teríamos visto que os fenômenos anestésicos não só provam a realidade da alma, mas a do Espiritismo.
É assim que tudo concorre, como foi anunciado, para abrir o caminho da doutrina nova; a ela se chega por uma porção de saídas, todas convergindo para um centro comum, e muita gente a ela carrega a sua pedra, uns conscientemente, outros sem o querer.
A obra do Sr. Ramon de la Sagra é uma dessas, cuja publicação temos o prazer de aplaudir, porque, embora nela tenha feito abstração do Espiritismo, pode-se considerar, como Deus na Natureza, do Sr. Flammarion, e A Pluralidade das Existências, do Sr. Pezzani, como monografias dos princípios fundamentais da Doutrina, às quais eles dão a autoridade da ciência.
ALLAN KARDEC.
[1] Um volume in-12, preço 2,50 francos; pelo correio 2,75 francos. Germer-Baillière, Livreiros. Rua de l’Ecole-deMédicine, 17.
[2] Anesthésie, suspensão da sensibilidade; do grego, a, privação, e aïsthanomaï, sentir.
[3] O curare é uma substância eminentemente tóxica, que os selvagens do Orenoco tiram de certas plantas e com a qual envenenam a ponta de suas flechas, que produzem feridas mortais.