Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1868

Allan Kardec

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Dezembro

Sessão anual comemorativa dos mortos.
(Sociedade de Paris, 1.o de novembro de 1868.)

Discurso de abertura pelo Sr. Allan Kardec.*

O Espiritismo é uma religião?

Onde quer que se encontrem duas ou três pessoas reunidas em meu nome, aí estarei com elas.”
(Mat. XVIII, 20.)

Caros irmãos e irmãs espíritas,

Estamos reunidos, neste dia consagrado pelo uso à comemoração dos mortos, para dar aos nossos irmãos que deixaram a Terra, um testemunho particular de simpatia; para continuar as relações de afeição e de fraternidade que existiam entre eles e nós em vida, e para chamar sobre eles a bondade do Todo-Poderoso. Mas, por que nos reunirmos? Não podemos fazer, cada um em particular, o que nos propomos fazer em comum? Qual a utilidade que pode haver em se reunir assim num dia determinado?

Jesus no-lo indica pelas palavras citadas no alto. Essa utilidade está no resultado produzido pela comunhão de pensamentos que se estabelece entre pessoas reunidas com o mesmo objetivo.

Mas compreendemos bem todo o alcance da expressão “comunhão de pensamentos”? Seguramente, até hoje, poucas pessoas dela tinham feito uma ideia completa. O Espiritismo, que nos explica tantas coisas pelas leis que nos revela, vem novamente nos explicar a causa, os efeitos e o poder dessa situação do espírito.

Comunhão de pensamento quer dizer pensamento comum, unidade de intenção, de vontade, de desejo, de aspiração. Ninguém pode desconhecer que o pensamento é uma força, mas é uma força puramente moral e abstrata? Não, pois do contrário não compreenderíamos certos efeitos do pensamento, e ainda menos a comunhão do pensamento. Para compreendê-lo, é preciso conhecer as propriedades e a ação dos elementos que constituem a nossa essência espiritual, e é o Espiritismo que no-las ensina.

O pensamento é o atributo característico do ser espiritual; é ele que distingue o espírito da matéria: sem o pensamento, o espírito não seria espírito. A vontade não é um atributo especial, é o pensamento que atingiu um certo grau de energia; é o pensamento transformado em força motriz. É pela vontade que o espírito imprime aos membros e ao corpo movimentos num determinado sentido. Mas, se ele tem a força de agir sobre os órgãos materiais, quão maior não deve ser essa força sobre os elementos fluídicos que nos cercam! O pensamento age sobre os fluidos ambientes, como o som age sobre o ar; esses fluidos nos trazem o pensamento, como o ar nos traz o som. Podemos dizer, portanto, com plena certeza, que há, nesses fluidos, ondas e raios de pensamentos que se cruzam sem se confundirem, como há no ar ondas e raios sonoros.

Uma assembleia é um foco onde se irradiam pensamentos diversos; é como uma orquestra, um coro de pensamentos em que cada um produz a sua nota. Resulta daí uma porção de correntes e de eflúvios fluídicos, cada um dos quais recebe a impressão pelo sentido espiritual, como num coro de música cada um recebe a impressão dos sons pelo sentido da audição.

Mas, assim como há raios sonoros harmônicos ou discordantes, também há pensamentos harmônicos ou discordantes. Se o conjunto for harmônico, a impressão será agradável; se for discordante, a impressão será penosa. Ora, para isso não é preciso que o pensamento seja formulado em palavras; a radiação fluídica não deixa de existir pelo fato de ser ou não ser expressa; se todas forem benevolentes, todos os assistentes experimentarão um verdadeiro bem-estar e sentir-se-ão à vontade; mas se se misturarem alguns pensamentos maus, produzem o efeito de uma corrente de ar gelado num meio tépido.

Tal é a causa do sentimento de satisfação que experimentamos numa reunião simpática; aí como que reina uma atmosfera moral salubre, onde respiramos à vontade; daí saímos reconfortados, porque ficamos impregnados de eflúvios fluídicos salutares. Assim se explicam, também, a ansiedade, o mal-estar indefinível que sentimos num meio antipático, em que pensamentos malévolos provocam, por assim dizer, correntes fluídicas malsãs.

A comunhão de pensamentos produz, assim, uma espécie de efeito físico, que reage sobre o moral; é o que só o Espiritismo poderia dar a compreender. O homem o sente instintivamente, porquanto ele procura as reuniões onde sabe que encontra essa comunhão. Nessas reuniões homogêneas e simpáticas ele adquire novas forças morais; poder-se-ia dizer que ele aí recupera as perdas fluídicas que ocorrem diariamente pela radiação do pensamento, como recupera pelos alimentos as perdas do corpo material.

A esses efeitos da comunhão dos pensamentos, junta-se um outro que é a sua consequência natural, e que importa não perder de vista: é o poder que adquire o pensamento ou a vontade, pelo conjunto de pensamentos ou vontades reunidas. Sendo a vontade uma força ativa, essa força é multiplicada pelo número de vontades idênticas, como a força muscular é multiplicada pelo número dos braços.

Estabelecido este ponto, concebe-se que nas relações que se estabelecem entre os homens e os Espíritos, há, numa reunião onde reina uma perfeita comunhão de pensamentos, uma força atrativa ou repulsiva que nem sempre possui um indivíduo isolado. Se, até o presente, as reuniões muito numerosas são menos favoráveis, é pela dificuldade de obter uma homogeneidade perfeita de pensamentos, o que depende da imperfeição da natureza humana na Terra. Quanto mais numerosas são as reuniões, mais aí se misturam elementos heterogêneos que paralisam a ação dos bons elementos, e que são como grãos de areia numa engrenagem. Não é assim nos mundos mais adiantados, e tal estado de coisas mudará na Terra, à medida que os homens se tornarem melhores.

Para os espíritas, a comunhão de pensamentos tem um resultado ainda mais especial. Vimos o efeito dessa comunhão de homem a homem; o Espiritismo nos prova que ele não é menor dos homens para os Espíritos, e vice-versa. Com efeito, se o pensamento coletivo adquire força pelo número, um conjunto de pensamentos idênticos, tendo o bem por objetivo, terá mais força para neutralizar a ação dos maus Espíritos; assim, vemos que a tática destes últimos é impelir para a divisão e para o isolamento. Sozinho, um homem pode sucumbir, ao passo que, se sua vontade for corroborada por outras vontades, ele poderá resistir, segundo o axioma: A união faz a força, axioma verdadeiro tanto do ponto de vista moral quanto do físico.

Por outro lado, se a ação dos Espíritos malévolos pode ser paralisada por um pensamento comum, é evidente que a dos bons Espíritos será secundada. Sua influência salutar não encontrará obstáculos; não sendo os seus eflúvios fluídicos detidos por correntes contrárias, espalhar-se-ão sobre todos os assistentes, precisamente porque todos tê-los-ão atraído pelo pensamento, não cada um em proveito pessoal, mas em proveito de todos, conforme a lei da caridade. Esses eflúvios descerão sobre eles em línguas de fogo, para nos servirmos de uma admirável imagem do Evangelho.

Assim, pela comunhão de pensamentos, os homens se assistem entre si, e ao mesmo tempo assistem os Espíritos e são por estes assistidos. As relações entre o mundo visível e o mundo invisível não são mais individuais, são coletivas, por isto mesmo são mais poderosas para o proveito das massas, como para o dos indivíduos. Numa palavra, estabelecem a solidariedade, que é a base da fraternidade. Ninguém trabalha para si só, mas para todos, e trabalhando por todos, cada um aí encontra a sua parte. É isto que o egoísmo não entende.

Graças ao Espiritismo, compreendemos, então, o poder e os efeitos do pensamento coletivo; entendemos melhor o sentimento de bem-estar que experimentamos num meio homogêneo e simpático; mas sabemos igualmente que o mesmo se dá com os Espíritos, porque eles também recebem os eflúvios de todos os pensamentos benévolos que para eles se elevam como uma nuvem de perfume. Os que são felizes experimentam uma alegria ainda maior por esse concerto harmonioso; os que sofrem sentem um maior alívio.

Todas as reuniões religiosas, seja qual for o culto a que pertençam, são fundadas na comunhão de pensamentos; é aí, com efeito, que elas devem e podem exercer toda a sua força, porque o objetivo deve ser o desprendimento do pensamento das injunções da matéria. Infelizmente, a maioria se afasta desse princípio, à medida que fazem da religião uma questão de forma. Disso resulta que cada um fazendo consistir seu dever na realização da forma, julga-se quite com Deus e com os homens quando praticou uma fórmula. Resulta, também, que cada um vai aos lugares de reuniões religiosas com um pensamento pessoal, por sua própria conta, e o mais das vezes sem nenhum sentimento de confraternidade em relação aos outros assistentes; ele está isolado em meio à multidão, e não pensa no Céu senão para si mesmo.

Certamente não era assim que entendia Jesus quando disse: “Quando diversos de vós estiverdes reunidos em meu nome, eu estarei entre vós.” “Reunidos em meu nome” quer dizer com um pensamento comum, mas não podemos estar reunidos em nome de Jesus sem assimilar os seus princípios, a sua doutrina. Ora, qual é o princípio fundamental da doutrina de Jesus? A caridade em pensamentos, palavras e obras. Os egoístas e os orgulhosos mentem quando se dizem reunidos em nome de Jesus, porque Jesus não os reconhece como seus discípulos.

Feridas por estes abusos e por estes desvios, há criaturas que negam a utilidade das assembleias religiosas e, por conseguinte, dos edifícios consagrados a tais assembleias. Em seu radicalismo, pensam que seria melhor construir hospícios do que templos, porque o templo de Deus está em toda parte; porque Deus pode ser adorado em toda parte; porque cada um pode orar em sua própria casa e a qualquer hora, ao passo que os pobres, os doentes e os enfermos necessitam de lugares de refúgio.

Mas pelo fato de terem cometido abusos; de terem se afastado do reto caminho, segue-se que não existe o caminho reto e que tudo aquilo de que abusam seja mau? Falar assim é desconhecer a fonte e os benefícios da comunhão de pensamentos que deve ser a essência das assembleias religiosas; é ignorar as causas que a provocam. Concebemos que os materialistas professem semelhantes ideias, porque eles, em todas as coisas, fazem abstração da vida espiritual, mas da parte dos espiritualistas, e mais ainda dos espíritas, seria um contrassenso. O isolamento religioso, como o isolamento social, conduz ao egoísmo. Que alguns homens sejam bastante fortes por si mesmos, muito largamente dotados pelo coração, para que sua fé e sua caridade não necessitem ser reaquecidas num foco comum, é possível, mas assim não se dá com as massas, às quais é preciso um estimulante, sem o qual elas poderiam deixar-se dominar pela indiferença. Além disto, qual o homem que poderia dizer-se bastante esclarecido para nada ter a aprender em relação aos seus interesses futuros, e suficientemente perfeito para dispensar conselhos na vida presente? É ele sempre capaz de instruir-se por si mesmo? Não; à maioria deles são necessários ensinamentos diretos em matéria de religião e de moral, como em matéria de ciência. Sem dúvida esse ensinamento pode ser dado por toda parte, sob a abóbada do céu como sob a de um templo, mas por que não teriam os homens lugares especiais para os negócios do Céu, como os têm para os negócios da Terra? Por que não teriam assembleias religiosas, como têm assembleias políticas, científicas e industriais? Aqui está uma bolsa onde se ganha sempre, sem que ninguém perca. Isto não impede as fundações em proveito dos infelizes, mas nós acrescentamos que quando os homens compreenderem melhor seus interesses do Céu, haverá menos gente nos hospícios.

Se as assembleias religiosas ─ nós falamos em geral, sem alusão a qualquer culto ─ muitas vezes se afastaram do objetivo primitivo principal, que é a comunhão fraterna do pensamento; se o ensino que aí é dado nem sempre seguiu o movimento progressivo da humanidade, é que os homens não progridem todos ao mesmo tempo; o que eles não fazem num período, fazem-no em outro; à medida que se esclarecem, veem as lacunas que existem em suas instituições, e as preenchem; compreendem que o que era bom numa época, em relação ao grau da civilização, torna-se insuficiente num estado mais adiantado, e restabelecem o nível. Sabemos que o Espiritismo é a grande alavanca do progresso em todas as coisas; que ele marca uma era de renovação. Saibamos, pois, esperar, e não peçamos a uma época mais do que ela pode dar. Como as plantas, é preciso que as ideias amadureçam para serem colhidos os frutos. Além disto, saibamos fazer as concessões necessárias nas épocas de transição, porque nada, na natureza, se opera de maneira brusca e instantânea.

Dissemos que o verdadeiro objetivo das assembleias religiosas deve ser a comunhão de pensamentos; é que, com efeito, a palavra religião quer dizer laço. Uma religião, em sua acepção ampla e verdadeira, é um laço que religa os homens numa comunhão de sentimentos, de princípios e de crenças. Consecutivamente, esse nome foi dado a esses mesmos princípios codificados e formulados em dogmas ou artigos de fé. É neste sentido que se diz: a religião política; entretanto, mesmo nesta acepção, a palavra religião não é sinônima de opinião; implica uma ideia particular: a de fé conscienciosa; eis por que se diz também: a fé política. Ora, os homens podem alistar-se, por interesse, num partido, sem ter fé nesse partido, e a prova é que o deixam sem escrúpulo, quando encontram seu interesse alhures, ao passo que aquele que o abraça por convicção é inabalável; ele persiste à custa dos maiores sacrifícios, e a abnegação dos interesses pessoais é a verdadeira pedra de toque da fé sincera. Contudo, se a renúncia a uma opinião, motivada pelo interesse, é um ato de desprezível covardia, é respeitável, ao contrário, quando fruto do reconhecimento do erro em que se estava; é então um ato de abnegação e de bom senso. Há mais coragem e grandeza em reconhecermos abertamente que nos enganamos, do que persistirmos, por amor-próprio, no que sabemos ser falso, e para não darmos um desmentido a nós mesmos, o que acusa mais teimosia do que firmeza, mais orgulho do que bom senso, mais fraqueza do que força. É mais ainda: é hipocrisia, porque queremos parecer o que não somos; além disso é uma ação má, porque é encorajar o erro por nosso próprio exemplo.

O laço estabelecido por uma religião, seja qual for o seu objetivo, é, pois, um laço essencialmente moral que liga os corações, que identifica os pensamentos, as aspirações, e não apenas o fato de compromissos materiais que podemos romper à vontade, ou da realização de fórmulas que falam mais aos olhos do que ao espírito. O efeito desse laço moral é o de estabelecer entre as pessoas que ele une, como consequência da comunhão de vistas e de sentimentos, a fraternidade e a solidariedade, a indulgência e a benevolência mútuas. É nesse sentido que também se diz: a religião da amizade, a religião da família.

Se assim é, perguntarão, então o Espiritismo é uma religião? Ora, sim, sem dúvida, senhores; no sentido filosófico, o Espiritismo é uma religião, e nós nos glorificamos por isto, porque é a doutrina que funda os laços da fraternidade e da comunhão de pensamentos, não sobre uma simples convenção, mas sobre as mais sólidas bases: as próprias leis da natureza.

Por que, então, temos declarado que o Espiritismo não é uma religião? Porque não há uma palavra para exprimir cada ideia, e porque, na opinião geral, a palavra religião é inseparável da ideia de culto; porque ela desperta exclusivamente uma ideia de forma, que o Espiritismo não tem. Se o Espiritismo se dissesse religião, o público não veria aí senão uma nova edição, uma variante, se quiserem, dos princípios absolutos em matéria de fé; uma casta sacerdotal com seu cortejo de hierarquias, de cerimônias e de privilégios; ele não o separaria das ideias de misticismo e dos abusos contra os quais tantas vezes a opinião pública se levantou.

Não tendo o Espiritismo nenhum dos caracteres de uma religião, na acepção usual do vocábulo, não podia nem devia enfeitar-se com um título sobre cujo valor as pessoas inevitavelmente ter-se-iam equivocado. Eis por que simplesmente se diz: doutrina filosófica e moral.

As reuniões espíritas podem, pois, ser feitas religiosamente, isto é, com o recolhimento e o respeito que comporta a natureza grave dos assuntos de que elas se ocupam. Pode-se mesmo, na ocasião, fazer preces que em vez de serem ditas em particular, são ditas em comum, sem que por isto as tomem por assembleias religiosas. Não penseis que isto seja um jogo de palavras; a nuança é perfeitamente clara, e a aparente confusão é devida à falta de um vocábulo para cada ideia.

Qual é, pois, o laço que deve existir entre os espíritas? Eles não estão unidos entre si por nenhum contrato material, por nenhuma prática obrigatória; qual o sentimento no qual se devem confundir todos os pensamentos? É um sentimento todo moral, todo espiritual, todo humanitário: o da caridade para com todos, ou, por outras palavras: o amor ao próximo, que compreende os vivos e os mortos, pois sabemos que os mortos também fazem parte da humanidade.

A caridade é a alma do Espiritismo. Ela resume todos os deveres do homem para consigo mesmo e para com os seus semelhantes; eis por que podemos dizer que não há verdadeiro espírita sem caridade.

Mas a caridade é ainda uma dessas palavras de sentido múltiplo, cujo inteiro alcance deve ser bem compreendido, e se os Espíritos não cessam de pregá-la e defini-la, é que provavelmente eles reconhecem que isto ainda é necessário.

O campo da caridade é muito vasto. Ele compreende duas grandes divisões que, na falta de termos especiais, podemos designar pelas expressões: caridade beneficente e caridade benevolente. Compreende-se facilmente a primeira, que é naturalmente proporcional aos recursos materiais de que se dispõe; mas a segunda está ao alcance de todos, tanto do mais pobre quanto do mais rico. Se a beneficência é forçosamente limitada, nada além da vontade poderia estabelecer limites à benevolência.

O que é preciso, então, para praticar a caridade benevolente? Amar ao próximo como a si mesmo: ora, se amarmos ao próximo como a nós mesmos, amá-lo-emos muito; agiremos para com os outros como gostaríamos que os outros agissem para conosco; não desejaremos nem faremos mal a ninguém, porque não gostaríamos que no-lo fizessem.

Amar ao próximo é, pois, abjurar todo sentimento de ódio, de animosidade, de rancor, de inveja, de ciúme, de vingança, numa palavra, todo desejo e todo pensamento de prejudicar; é perdoar aos seus inimigos e retribuir o mal com o bem; é ser indulgente para com as imperfeições de seus semelhantes e não procurar o cisco no olho do vizinho, quando não vemos a trave que temos no nosso; é cobrir ou desculpar as faltas dos outros, em vez de nos comprazermos em pô-las em relevo por espírito de maledicência; é, ainda, não nos fazermos valorizar à custa dos outros; não procurarmos esmagar a pessoa sob o peso de nossa superioridade; não desprezarmos ninguém por orgulho. Eis a verdadeira caridade benevolente, a caridade prática, sem a qual a caridade é palavra vã; é a caridade do verdadeiro espírita como do verdadeiro cristão, aquela sem a qual quem diz: Fora da caridade não há salvação, pronuncia sua própria condenação, tanto neste quanto no outro mundo.

Quanta coisa haveria a dizer a tal respeito! Quantas belas instruções nos dão os Espíritos incessantemente! Sem o receio de alongar-me e de abusar de vossa paciência, senhores, seria fácil demonstrar que, em se colocando no ponto de vista do interesse pessoal, egoísta, se preferirdes, porque nem todos os homens estão maduros para uma completa abnegação para fazer o bem unicamente por amor do bem, digo que seria fácil demonstrar que eles têm tudo a ganhar em agir deste modo e tudo a perder agindo diversamente, mesmo em suas relações sociais; depois, o bem atrai o bem e a proteção dos bons Espíritos; o mal atrai o mal e abre a porta à malevolência dos maus. Mais cedo ou mais tarde o orgulhoso será castigado pela humilhação, o ambicioso pelas decepções, o egoísta pela ruína de suas esperanças, o hipócrita pela vergonha de ser desmascarado. Aquele que abandona os bons Espíritos por estes é abandonado e de queda em queda se vê, por fim, no fundo do abismo, ao passo que os bons Espíritos erguem e amparam aquele que, nas maiores provações, não deixa de confiar na Providência e jamais se desvia do reto caminho, aquele, enfim, cujos secretos sentimentos não dissimulam nenhum pensamento oculto de vaidade ou de interesse pessoal. Então, de um lado, ganho assegurado; do outro, perda certa; cada um, em virtude de seu livre-arbítrio, pode escolher os riscos que quer correr, mas não poderá queixar-se senão de si mesmo pelas consequências de sua escolha.

Crer num Deus todo-poderoso, soberanamente justo e bom; crer na alma e em sua imortalidade; na preexistência da alma como única justificação do presente; na pluralidade das existências como meio de expiação, de reparação e de adiantamento intelectual e moral; na perfectibilidade dos mais imperfeitos seres; na felicidade crescente com a perfeição; na equitável remuneração do bem e do mal, conforme o princípio: a cada um segundo as suas obras; na igualdade da justiça para todos, sem exceções, favores nem privilégios para nenhuma criatura; na duração da expiação limitada pela imperfeição; no livre-arbítrio do homem, que lhe deixa sempre a escolha entre o bem e o mal; crer na continuidade das relações entre o mundo visível e o mundo invisível; na solidariedade que religa todos os seres passados, presentes e futuros, encarnados e desencarnados; considerar a vida terrestre como transitória e uma das fases da vida do Espírito, que é eterna; aceitar corajosamente as provações, em vista do futuro mais invejável que o presente; praticar a caridade em pensamentos, palavras e obras na mais larga acepção da palavra; esforçar-se todos os dias para ser melhor que na véspera, extirpando alguma imperfeição de sua alma; submeter todas as crenças ao controle do livre exame e da razão e nada aceitar pela fé cega; respeitar todas as crenças sinceras, por mais irracionais que nos pareçam e não violentar a consciência de ninguém; ver, enfim, nas descobertas da ciência a revelação das leis da natureza, que são as leis de Deus: eis o Credo, a religião do Espiritismo, religião que pode congraçar-se com todos os cultos, isto é, com todas as maneiras de adorar a Deus. É o laço que deve unir todos os espíritas numa santa comunhão de pensamentos, esperando que ele ligue todos os homens sob a bandeira da fraternidade universal.

Com a fraternidade, filha da caridade, os homens viverão em paz e se pouparão dos males inumeráveis que nascem da discórdia, por sua vez filha do orgulho, do egoísmo, da ambição, do ciúme e de todas as imperfeições da humanidade.

O Espiritismo dá aos homens tudo o que é preciso para a felicidade aqui na Terra, porque lhes ensina a se contentarem com o que eles têm. Que os espíritas sejam, pois, os primeiros a aproveitar os benefícios que ele traz, e que inaugurem entre si o reino da harmonia que resplandecerá nas gerações futuras.

Os Espíritos que nos rodeiam aqui são inumeráveis, atraídos pelo objetivo que nos propusemos ao nos reunirmos, a fim de dar aos nossos pensamentos a força que nasce da união. Dêmos aos que nos são caros um boa lembrança e o penhor de nossa afeição, encorajamento e consolações aos que estão necessitados. Façamos de modo que cada um recolha a sua parte dos sentimentos de caridade benevolente de que estivermos animados, e que esta reunião produza os frutos que todos têm o direito de esperar.

Allan Kardec.

Depois deste discurso, foi lida uma comunicação espontânea, ditada pelo Espírito do Sr. H. Dozon, em 1.º de novembro de 1865, sobre a solenidade do dia de Todos os Santos, e que é lida todos os anos, na sessão comemorativa.



* A primeira parte deste discurso é tirada de uma publicação anterior sobre a Comunhão de pensamentos; mas que era necessário relembrar, dada a ligação com a ideia principal.


Todos os Santos.

A festa de Todos os Santos, meus bons amigos, é uma festa que, para a maior parte dos que não possuem a verdadeira fé, os entristece e lhes faz derramar lágrimas, em vez de se alegrarem. Observai que desde a humilde choupana até o palácio, quando o dobre a finados lembra o nome do esposo ou da esposa, de um pai, de uma mãe, de um filho, de uma filha, eles choram. Parece que tudo está acabado, que eles nada mais têm a esperar aqui embaixo, contudo, eles oram! Que é, então, essa prece? É um pensamento dirigido ao ser amado, mas sem esperança. O choro abafa a prece. Por quê? Ah! É que eles duvidam; eles não têm essa fé viva que infunde a esperança, que vos sustenta nas maiores lutas. É que eles não compreenderam que a vida na Terra não é senão uma separação momentânea; numa palavra, é que aqueles que lhes ensinaram a orar não tinham, também eles, a fé verdadeira, a fé que se apoia na razão.

Mas é chegada a hora em que estas belas palavras do Cristo vão ser, enfim, compreendidas: “Meu pai deve ser adorado, não mais apenas nos templos, mas em toda parte, em espírito e em verdade.” Tempo virá em que elas se realizarão. Belas e sublimes palavras! Sim, meu Deus, não sois adorado apenas nos templos, mas sois adorado no monte e por toda parte. Sim, aquele que molhou os lábios na taça bendita do Espiritismo, ora não só neste dia, mas diariamente; o viajante ora em seu caminho, o operário durante o seu trabalho; aquele que pode dispor de seu tempo o emprega no alívio de seus irmãos que sofrem.

Meus irmãos, alegrai-vos, pois dentro de pouco tempo vereis grandes coisas! Quando eu estava na Terra, eu via a doutrina grande e bela, mas eu estava bem longe de poder compreendê-la em toda a sua grandeza e em seu verdadeiro objetivo. Assim, vos direi: Redobrai de zelo; consolai os que sofrem, porque há seres que foram de tal modo afligidos durante a sua vida, que necessitam ser amparados e ajudados na luta. Sabeis quanto a caridade é agradável a Deus. Praticai-a, pois, sob todas as formas; praticai-a em nome dos Espíritos cuja memória festejais neste dia, e eles vos bendirão!

H. Dozon.

Depois das preces de costume (Ver a Revista espírita de novembro de 1865), trinta e duas comunicações foram obtidas pelos médiuns presentes, em número de dezoito. Dada a impossibilidade de publicá-las todas, a Sociedade fez uma escolha das três seguintes, para serem anexadas ao discurso acima, cuja impressão ela pediu.

As outras terão lugar nas coleções especiais que serão publicadas ulteriormente.

I

O grande Espírito Larochefoucauld disse, numa de suas obras, que deveríeis tremer diante da vida e diante da morte! Certamente, se deveis tremer, é por ver vossa existência incerta, perturbada, completamente falha; é por terdes realizado um trabalho estéril, inútil para vós e para outros; é por terdes sido um falso amigo, um mau irmão, um conselho pernicioso; é por serdes mau filho, pai irrefletido, cidadão injusto, desconhecedor de vossos deveres, de vosso país, das leis que vos regem, da sociedade e da solidariedade.

Quantos de meus amigos vi, Espíritos brilhantes, engenhosos, instruídos, muitas vezes faltarem ao objetivo profundo da vida! Eles construíam hipóteses mais ou menos absurdas: aqui a negação; ali, a fé ardente; além, se faziam neófitos deste ou daquele sistema de governo, de filosofia, e muitas vezes lançavam, ai de mim! suas belas inteligências num fosso, de onde elas não podiam mais sair senão feridas e enxovalhadas para sempre.

A vida, com suas asperezas, seus maus gostos e suas incertezas, é, entretanto, uma coisa bela! Como! Saís de um embrião, de um nada, e atraís em torno de vós os beijos, os cuidados, o amor, o devotamento, o trabalho, e isto não seria nada senão a vida! Como é, então, que para vós, seres fanados, sem força, sem linguagem, gerações inteiras criaram os campos incessantemente explorados da poupança humana? Poupança de saber, de Filosofia, de Mecânica, de Ciências diversas; milhares de cidadãos corajosos gastaram os seus corpos e dispuseram de suas vigílias para vos criar os mil elementos diversos de vossa civilização. Desde as primeiras letras até uma definição sábia, encontra-se tudo o que pode guiar e formar o espírito; hoje pode-se ver, porque tudo é luz. A sombra das idades sombrias desapareceu para sempre, e o adulto de dezesseis anos pode contemplar e admirar um nascer do sol e analisá-lo, pesar o ar e, com o auxílio da Química, da Física, da Mecânica e da Astronomia, criar mil gozos divinos. Com a pintura, ele reproduz uma paisagem; com a música, ele escreve algumas dessas harmonias que Deus espalha em profusão nas harmonias infinitas!

Com a vida, pode-se amar, dar, espalhar muito; por vezes pode-se ser sol e iluminar o seu interior, a sua família, as suas relações, ser útil, cumprir a sua missão. Oh! sim, a vida é uma coisa bela, fremente, cheia de fogo e de expansão, cheia de fraternidade e desses deslumbramentos que jogam as misérias para o último plano.

Ó vós todos, meus caros condiscípulos da Rua Richelieu; vós, meus fiéis do 14; vós todos que tantas vezes interrogastes a existência vos perguntando a palavra final; a vós que baixáveis a cabeça, incertos ante a última hora, diante da palavra Morte, que significa para vós: vazio, separação, desagregação, a vós eu venho dizer: Erguei a cabeça e esperai, não mais fraqueza, não mais terror, porque se os vossos estudos conscienciosos e as religiões de nossos pais não vos deixaram senão desgosto da vida, incerteza e incredulidade, é que, estéril em tudo, a ciência humana mal conduzida só atingia o nada. Vós todos, que amais a humanidade e resumis a esperança futura pelo estudo das ciências sociais, por sua aplicação séria, eu vos digo: Esperai, crede e procurai. Como eu, deixastes passar a verdade; nós a abandonávamos e ela batia à nossa porta, que obstinadamente lhe havíamos fechado. Daqui por diante amareis a vida, amareis a morte, essa grande consoladora, porque quereis, por uma vida exemplar, evitar um recomeço; querereis esperar no sólio da erraticidade todos aqueles que amais, não somente a vossa família, mas a geração inteira que guiastes, para lhes desejar as boas-vindas e a emigração para mundos superiores.

Vedes que vivo e todos nós vivemos. A reencarnação, que tanto nos fez rir, é o problema resolvido que tanto procuramos. Aí está esse problema em vossas mãos, cheio de atrativos, de promessas ardentes; vossos pais, vossas esposas, vossos filhos, a multidão de amigos vos querem responder; eles estão todos reunidos, esses caros desaparecidos aos vossos olhos; eles falarão ao vosso espírito, à vossa razão; eles vos revelarão verdades, e a fé é uma lei bem-amada; mas, interrogai-os com perseverança.

Ah! A morte nos causava medo e nós tremíamos! Entretanto, eis-me aqui, eu, Guillaumin, um incrédulo, um incerto, reconduzido à verdade. Milhares e milhares de Espíritos se apressam, esperam a vossa decisão; eles gostam da lembrança e da peregrinação pelos cemitérios! É uma baliza esse respeito aos mortos, mas esses mortos estão todos vivos. Em vez de urnas funerárias e de epitáfios mais ou menos verdadeiros, eles vos pedem uma troca de ideias, de conselhos, um suave comércio de espírito, essa comunidade de ideias que gera a coragem, a perseverança, a vontade, os atos de devotamento, e esse fortificante e consolador pensamento que a vida se retempera na morte e que podeis, de agora em diante, a despeito de Larochefoucauld e de outros grandes gênios, não tremer diante da vida nem diante da morte.

Deus é a exuberância, é a vida em tudo e sempre. Cabe a nós compreender sua sabedoria nas diversas fases pelas quais ele purifica a humanidade.

Guillaumin.
(Médium: Sr. Leymarie.)

II

Escolher mal o meu momento foi sempre uma das minhas contínuas inabilidades, e vir neste dia, em meio a esta numerosa reunião de Espíritos e de encarnados, é muito realmente um ato de audácia de que só a minha timidez pode ser capaz. Mas vejo em vós tanta bondade, doçura e amenidade; sinto tão bem que em cada um de vós posso encontrar um coração amigo, compassivo, e sendo a indulgência a menor das qualidades que animam os vossos corações, malgrado a minha audácia, não me perturbo e conservo toda a presença de espírito que por vezes me falta, em circunstâncias menos imponentes.

Mas, perguntareis, o que vem fazer, então, com sua verbiagem insinuante, esse desconhecido que em lugar de um instrutor vem monopolizar um médium útil? Quanto ao presente tendes razão. Assim, apresso-me em dar a conhecer o meu desígnio, para não me apropriar por muito tempo de um lugar que usurpo.

Numa passagem do discurso hoje pronunciado por vosso presidente, uma reflexão vibrou-me ao ouvido, como só uma verdade pode vibrar e, confundido na multidão de Espíritos atentos, de súbito pus-me a descoberto. Ainda fui severamente julgado por uma porção de Espíritos que, baseando-se em suas recordações e na reputação de uma apreciação trazida de outros tempos, subitamente reconheceram em mim o misantropo selvagem, o urso da civilização, o austero crítico das instituições em desacordo com seu próprio raciocínio. Ai de mim! Como um erro faz sofrer e há quanto tempo dura o mal praticado contra as massas pela tola pretensão de um orgulhoso da humildade, de um louco do sentimento!

Sim, tendes razão: o isolamento em matéria religiosa e social não pode engendrar senão o egoísmo e, sem que muitas vezes dele se dê conta, o homem se torna misantropo, deixando o seu egoísmo dominá-lo. O recolhimento produzido pelo efeito do silêncio grandioso da natureza falando à alma é útil, mas a sua utilidade não pode produzir seus frutos senão quando o ser que ouve a natureza falar à sua alma, relata aos homens a verdade da sua moral. Mas se aquele que sente, em face da criação, sua alma se voar para as regiões de uma era pura e virtuosa, não se serve de suas sensações, ao despertar, no meio das instituições de sua época, senão para censurar os abusos que sua natureza sensitiva lhe exagera, porque ela sofre com isto, se ele não encontra, para endireitar os erros dos humanos, senão fel e ressentimento, sem lhes mostrar docemente o verdadeiro caminho, tal qual o descobriu na própria natureza, oh! então, infeliz dele, se não se servir de sua inteligência senão para açoitar, em vez de cuidar das feridas da sociedade!

Sim, tendes razão: viver só no meio da natureza é ser egoísta e ladrão, porque o homem foi criado para a sociabilidade; e isto é tão verdadeiro que eu, o selvagem, o misantropo, o intratável eremita, venho aplaudir esta passagem do discurso aqui pronunciado: O isolamento social e religioso conduz ao egoísmo.

Uni-vos, pois, nos esforços e nas ideias; sobretudo, amai. Sede bons, suaves, humanos; dai à amizade o sentimento da fraternidade; pregai pelo exemplo dos vossos atos, os salutares efeitos de vossas crenças filosóficas; sede espíritas de fato e não somente de nome, e em breve os loucos do meu gênero, os utopistas do bem, não terão mais necessidade de gemer sobre os defeitos de uma legislação sob a qual eles devem viver, porque o Espiritismo, compreendido e sobretudo praticado, reformará tudo, para vantagem dos homens.

J. J. Rousseau.
(Médium: Sr. Morin.)

III

O perfume que exala de todos os bons sentimentos é uma prece constante que se eleva para Deus, e todas as boas ações são ações de graça ao Eterno.

Sra. Victor Hugo.

A dedicação pelo reconhecimento é um impulso do coração; o devotamento pelo amor é um impulso da alma.

Sra. Dauban.

O reconhecimento é um benefício que recompensa aquele que o merece. A gratidão é um ato do coração que dá, ao mesmo tempo, o prazer do bem àquele a quem se deve ser reconhecido e àquele que o é.

Vézy.

A ingratidão é punida como ação má pelo abandono de que é objeto, como a gratidão é recompensada pela alegria que proporciona.

Leclerc.

O dever da mulher é trazer ao homem todas as consolações e os encorajamentos necessários à sua vida de vicissitudes e penosos trabalhos. A mulher deve ser seu sustentáculo, seu guia, o facho que ilumina o seu caminho, e deve impedi-lo de falir. Se ela faltar à sua missão, será punida, mas se, malgrado o seu devotamento, o homem repele os impulsos de seu coração, ela é duplamente recompensada por haver persistido no cumprimento de seus deveres.

Delphine de Girardin.

A dúvida é o veneno lento que a alma faz a matéria absorver e da qual recebe o primeiro castigo. A dúvida é o suicídio da alma, que traz infalivelmente a morte do corpo. Uma alma suicidar-se é difícil de compreender. Mas não é morrer o viver na sombra, quando se sente a luz em volta de si? Afastai, pois, do vosso Espírito, o véu que encobre os esplendores da vida, e vede esses sóis radiosos que vos dão o dia: aí está a verdadeira luz; aí está o objetivo a que deveis chegar pela fé.

Jobard.


O egoísmo é a paralisação de todos os bons sentimentos. O egoísmo é a deformidade da alma, que traspassa a matéria, fazendo-vos amar tudo o que a ela se dirige e repelir tudo o que se dirige aos outros. O egoísmo é a negação da sublime sentença do Cristo, sentença invertida ignominiosamente: “Fazei aos outros o que gostaríeis que eles vos fizessem.”

Plácido.

A susceptibilidade, eis um defeito para uso de todos, e cada um, não ides dizer o contrário, dele está um pouco carregado. Ufa! Se soubésseis quanto é ridículo ser suscetível e quanto esse defeito torna desajeitado, eu vos asseguro que ninguém mais desejaria ser por ele atingido, porque se gosta de ser belo.

Gay.

O orgulho é o guarda-chuva social de todos e que cada um arroja sobre o gracioso amor-próprio; certamente é preciso ter amor-próprio e orgulho, é o que dá a ambição do bem (sem jogo de palavras), mas demasiado, estraga o espírito e corrompe o coração.

Mangin.

A ambição, ele acaba de dizer, mas sabeis qual a ambição que não impede a alma de elevar-se para os esplendores do infinito? Pois bem! É a que vos induz a fazer o bem. Todas as outras ambições vos levam ao orgulho e ao egoísmo, flagelos da humanidade.

Bonnefon.

Meus caros amigos, os Espíritos que vos vêm falar, não só estavam felizes por manifestar sua presença, mas têm a alegria de pensar que cada um de vós esforçar-se-á para se corrigir e pôr em prática as sábias lições que vos deram e as que vos trazem em cada uma de vossas sessões. Crede, os Espíritos são para vós o que vossos pais foram ou deveriam ter sido. Eles repreendem quando vos aconselham e vos ajudam, e enquanto não os escutais, dizem que vos abandonam; revoltam-se contra vós, e logo depois de vos terem falado duramente, voltam vos encorajando e se esforçando para impelir constantemente os vossos pensamentos para o bem. Sim, os Espíritos vos amam como o bom pai ama a seus filhos; eles vos têm piedade, cuidam de vossos dias e afastam de vós todo mal que vos pode acontecer, como a mãe cerca o filho de todos os cuidados mais delicados, de todas as atenções necessárias à sua fragilidade. Deus lhes deu essa missão; deu-lhes a coragem para cumpri-la e nenhum desses bons Espíritos, seja qual for o seu grau na hierarquia espiritual, falhará na sua tarefa. Eles compreendem, sentem, veem esses esplendores divinos que devem ser a sua recompensa; eles vão adiante e desejariam levar-vos atrás deles, impelir-vos adiante deles, se o pudessem. Eis por que vos repreendem; eis por que vos aconselham. Por vossa vez, orai por eles, para que a vossa indocilidade não os impeça de continuar prodigalizando-vos seus benefícios, e que Deus continue a lhes dar a força de vos ajudar.

São Luís.
(Médium: Sr. Bertrand.)

CONSTITUIÇÃO TRANSITÓRIA DO ESPIRITISMO

I: Considerações preliminares. — II: Extrato do relatório da caixa do Espiritismo feito à Sociedade de Paris em 5 de maio de 1865. — III: Dos cismas. — IV: O chefe do Espiritismo. — V: Comitê central. — VI: Obras fundamentais da doutrina. — VII: Atribuições do comitê. — VIII: Vias e meios. — IX: Conclusão.

I
Considerações preliminares.

O Espiritismo teve, como todas as coisas, seu período de nascimento, e até que todas as questões principais e acessórias que a ele se ligam tivessem sido resolvidas, ele só pôde dar resultados incompletos. Pudemos entrever o seu objetivo, presumir-lhe as consequências, mas apenas de maneira vaga. Da incerteza sobre os pontos ainda não determinados forçosamente deveriam nascer divergências sobre a maneira de considerá-los; a unificação só poderia ser obra do tempo; ela se fez gradualmente, à medida que os princípios foram elucidados. Somente quando a doutrina tiver abarcado todas as partes que comporta é que ela formará um todo harmonioso, e só então é que poderemos julgar o que é verdadeiramente o Espiritismo.

Enquanto o Espiritismo não era mais que uma opinião filosófica, não podia haver entre os adeptos senão a simpatia natural produzida pela comunhão das ideias, mas nenhum laço sério podia existir, por falta de um programa claramente definido. Tal é, evidentemente, a principal causa da pouca coesão e estabilidade dos grupos e sociedades que se formaram. Assim, constantemente e com todas as nossas forças, dissuadimos os espíritas de fundar prematuramente qualquer instituição especial apoiada na doutrina, antes que ela estivesse assentada em bases sólidas; teria sido expor-se a revezes inevitáveis cujo efeito teria sido desastroso pela impressão que teriam produzido sobre o público e pelo desencorajamento disto resultante nos adeptos. Esses revezes talvez tivessem retardado de um século o progresso definitivo da doutrina, a cuja impotência teriam imputado um insucesso que, na realidade, não teria sido senão resultado da imprevidência. Por não saberem esperar o momento oportuno, os muito apressados e os impacientes de todas as épocas comprometeram as melhores causas*.

Não devemos pedir às coisas senão o que elas podem dar, à medida que estejam em condições de produzir; não podemos exigir de uma criança o que devemos esperar de um adulto, nem de uma árvore recentemente plantada o que ela só produzirá quando estiver em toda a sua força. O Espiritismo, em via de elaboração, não podia dar senão resultados individuais; os resultados coletivos e gerais serão os frutos do Espiritismo completo, que se desenvolverá sucessivamente.

Embora o Espiritismo ainda não tenha dito sua última palavra sobre todos os pontos, ele se aproxima de sua completude, e não está longe o momento em que será preciso dar-lhe uma base forte e durável, não obstante suscetível de receber todos os desenvolvimentos que circunstâncias ulteriores comportarem, e dando toda segurança aos que indagam quem lhe tomará as rédeas depois de nós.

A doutrina é, sem dúvida, imperecível, porque repousa sobre as leis da natureza e que, melhor que qualquer outra, responde às legítimas aspirações dos homens; entretanto sua difusão e sua instalação definitiva podem ser adiantadas ou retardadas por circunstâncias, algumas das quais estão subordinadas à marcha geral das coisas, mas outras são inerentes à própria doutrina, à sua constituição e à sua organização; é destas que temos que nos ocupar especialmente no momento.

Embora a questão de fundo em tudo seja preponderante e acabe sempre por prevalecer, a questão de forma tem aqui uma importância capital; ela poderia mesmo ultrapassá-la momentaneamente a suscitar entraves e demoras, conforme a maneira pela qual fosse resolvida.

Teríamos, pois, feito uma coisa incompleta e deixado grandes embaraços para o futuro, se não tivéssemos previsto as dificuldades que podem surgir. Foi com o propósito de evitar isso tudo que elaboramos, com o concurso dos bons Espíritos que nos assistem em nossos trabalhos, um plano de organização para o qual tiramos proveito da experiência do passado, a fim de evitar os escolhos contra os quais se chocaram a maior parte das doutrinas que apareceram no mundo. Podendo este plano prestar-se a todos os desenvolvimentos que o futuro reserva, demos a essa constituição a qualificação de transitória.

O plano que segue foi concebido há muito tempo, porque sempre nos preocupamos com o futuro do Espiritismo; fizemo-lo pressentir em diversas circunstâncias, vagamente, é certo, mas suficientemente, para mostrar que não é hoje uma concepção nova, e que, trabalhando na parte teórica da obra, não negligenciamos o lado prático.

Antes de abordar o fundo da questão, parece-nos útil lembrar algumas passagens do relatório que apresentamos à Sociedade de Paris no dia 5 de maio de 1865, a propósito da caixa do Espiritismo, e que foi publicado na Revista de junho de 1865. As considerações que ele encerra se ligam diretamente ao nosso assunto, do qual elas são as preliminares indispensáveis.


* Tratamos especialmente a questão das instituições espíritas num artigo da Revista de julho de 1866, ao qual remetemos para mais esclarecimentos.


II
Extrato do relatório da caixa do Espiritismo feito à Sociedade de Paris em 5 de maio de 1865.

Falaram muito dos lucros que eu obtinha com as minhas obras; ninguém sério acredita realmente em meus milhões, malgrado a afirmação dos que diziam saber de boa fonte que eu tinha um estilo de vida principesco, equipagens a quatro cavalos e que em minha casa só se pisava em tapetes de Aubusson. (Revista de junho de 1862). A despeito do que tenham dito, além disso, o autor de uma brochura que conheceis, e que prova, por cálculos hiperbólicos, que o orçamento das minhas receitas ultrapassa a lista civil do mais poderoso soberano da Europa, porque, só na França, vinte milhões de espíritas são meus tributários (Revista de junho de 1863), há um fato mais autêntico do que os seus cálculos. É que jamais pedi qualquer coisa a quem quer que seja, e ninguém jamais me deu nada, a mim pessoalmente; numa palavra, não vivo às custas de ninguém, pois que, das somas que me foram voluntariamente confiadas no interesse do Espiritismo, nenhuma parcela foi desviada em meu proveito*.


* Essas somas se elevavam, naquela época, a 14.100 francos, cujo emprego, em proveito exclusivo da doutrina, está justificado nas contas.


Minhas imensas riquezas proviriam, pois, de minhas obras espíritas. Embora essas obras tenham tido um sucesso inesperado, basta ter poucas noções de negócios de livraria para saber que não é com livros filosóficos que se amontoam milhões em cinco ou seis anos, quando se tem sobre a venda direitos autorais de apenas alguns cêntimos por exemplar. Mas, muito ou pouco, sendo esse produto o fruto de meu trabalho, ninguém tem o direito de se imiscuir no emprego que dele faço, mesmo que se elevasse a milhões, considerando-se que a venda dos livros, assim como a assinatura da Revista, é facultativa e não é imposta em qualquer circunstância, nem mesmo para assistir às sessões da Sociedade: ninguém tem nada com isso. Comercialmente falando, estou na posição de todo homem que colhe o fruto de seu trabalho; corro o risco de todo escritor, que pode vencer como pode fracassar*.


* Aos que perguntaram por que vendíamos os nossos livros em vez de dá-los, respondemos que o faríamos, se tivéssemos encontrado impressor que no-los imprimisse de graça, um negociante que fornecesse o papel grátis, livreiros que não exigissem nenhuma comissão para distribuí-los, uma administração dos correios que os transportasse por filantropia etc. Enquanto esperamos, como não temos milhões para cobrir esses encargos, somos obrigados a lhes atribuir um preço.


Posto que, sob esse ponto de vista, eu não tenha contas a prestar, creio útil, pela própria causa à qual me votei, dar algumas explicações.

Para começar, direi que não sendo as minhas obras minha propriedade exclusiva, sou obrigado a comprá-las do meu editor e a pagá-las como um livreiro, com exceção da Revista; que o lucro se acha singularmente diminuído pelas obras que não são vendidas e pelas distribuições gratuitas, feitas no interesse da doutrina, a pessoas que sem isto delas estariam privadas. Um cálculo muito simples prova que o preço de dez volumes perdidos ou doados, que não deixo de pagar, basta para absorver o lucro de cem volumes. Isto seja dito à guisa de informação e entre parênteses. Tudo somado e feito o balanço, contudo resta alguma coisa. Imaginai a cifra que quiserdes. O que faço com ela? Isto é o que mais preocupa certas criaturas.

Quem quer que outrora tenha visto a nossa intimidade e a veja hoje, pode atestar que nada mudou em nossa maneira de viver depois que passei a ocupar-me do Espiritismo. Ela é agora tão simples quanto era outrora. Então é certo que os meus lucros, por enormes que sejam, não servem para nos dar os prazeres do luxo. Será que eu teria a mania de entesourar para ter o prazer de contemplar meu dinheiro? Não penso que o meu caráter e os meus hábitos jamais tenham podido fazê-lo supor. Por que as coisas são assim? Considerando-se que disso não tiro proveito, quanto mais fabulosa a soma, mais embaraçosa a resposta. Um dia saberão a cifra exata, assim como o emprego detalhado, e os criadores de histórias poderão economizar a imaginação. Hoje limito-me a alguns dados gerais, para pôr um freio em suposições ridículas. Para tanto, devo entrar nalguns detalhes íntimos, pelo que vos peço perdão, mas que são necessários.

Em todos os tempos temos tido de que viver muito modestamente, é certo, mas o que teria sido pouco para certa gente nos bastava, graças aos nossos gostos e aos nossos hábitos de ordem e de economia. À nossa pequena renda vinha juntar-se o produto das obras que publiquei antes do Espiritismo, e o de um modesto emprego que tive de deixar quando os trabalhos da doutrina absorveram todo o meu tempo.

Tirando-me da obscuridade, o Espiritismo veio lançar-me numa nova via; em pouco tempo vi-me arrastado num movimento que estava longe de prever. Quando concebi a ideia do Livro dos Espíritos, minha intenção era não me pôr em evidência e ficar incógnito; mas, logo ultrapassado, isto me foi impossível: tive que renunciar à minha solitude, sob pena de abdicar a obra empreendida e que crescia dia a dia. Foi-me preciso seguir o seu impulso e tomar-lhe as rédeas. Se meu nome tem agora alguma popularidade, não fui eu, certamente, que a busquei, pois é notório que não a devo nem à propaganda, nem à camaradagem da imprensa, e que jamais me aproveitei de minha posição e de minhas relações para me lançar na sociedade, quando isto teria sido fácil. Mas, à medida que a obra crescia, um horizonte mais vasto se desenrolava à minha frente, cujos limites recuavam. Compreendi, então, a imensidade de minha tarefa e a importância do trabalho que me restava a fazer para completá-la. Longe de me apavorar, as dificuldades e os obstáculos redobraram a minha energia; vi o objetivo, e resolvi atingi-lo com a assistência dos bons Espíritos. Eu sentia que não tinha tempo a perder e não o perdi nem em visitas inúteis, nem em cerimônias ociosas. Foi a obra de minha vida; a ela dei todo o meu tempo; a ela sacrifiquei o meu repouso, a minha saúde, porque o futuro estava escrito diante de mim em caracteres irrefutáveis.

Sem nos afastarmos do nosso gênero de vida, essa posição excepcional não deixou de criar-nos necessidades às quais apenas meus recursos não permitiam prover. Seria difícil imaginar a multiplicidade de gastos que ela determina, e que sem isso eu teria evitado.

Ora! senhores, o que me proporcionou essa suplementação de recursos foi o produto de minhas obras. Eu digo com satisfação que foi com o meu próprio trabalho, com o fruto de minhas vigílias que provi, pelo menos na maior parte, as necessidades materiais da instalação da doutrina. Eu trouxe, assim, uma grande quota-parte à caixa do Espiritismo. Os que ajudam na propagação das obras não poderão, assim, dizer que trabalham para me enriquecer, pois o produto de todo livro comprado, de toda assinatura da Revista, beneficia a doutrina e não um indivíduo.

Prover o presente não era tudo; também era preciso pensar no futuro e preparar uma fundação que, depois de mim, pudesse ajudar aquele que me substituirá na grande tarefa que terá de cumprir. Essa fundação, sobre a qual me devo calar ainda, se liga à propriedade que possuo, e é em vista disso que eu aplico uma parte de meus rendimentos em melhorá-la. Como estou longe dos milhões com que me gratificaram, duvido muito que, a despeito de minhas economias, meus recursos pessoais jamais me permitam dar a essa fundação o complemento que lhe queria dar em minha vida; mas, considerando-se que sua realização está nos planos de meus guias espirituais, se eu mesmo não o fizer, é provável que algum dia isto seja feito. Enquanto espero, elaboro os seus planos.

Longe de mim, senhores, o pensamento de envaidecer-me pelo que vos acabo de expor; foi necessária a persistência de certas diatribes para me levar, embora com pesar, a romper o silêncio sobre alguns fatos que me concernem. Mais tarde, todos aqueles que a malevolência houve por bem desnaturar serão trazidos à luz por documentos autênticos — mas o momento dessas explicações ainda não chegou; a única coisa que me importava no momento era que ficásseis esclarecidos sobre o destino dos fundos que a Providência fez passar por minhas mãos, fosse qual fosse a origem. Não me considero senão depositário, mesmo daqueles que ganho, e, com mais forte razão, daqueles que me são confiados.

Alguém me perguntava um dia, sem curiosidade, bem entendido, e por puro interesse pela causa, o que eu faria de um milhão, se o tivesse. Respondi que hoje o emprego seria completamente diferente do que teria sido no princípio. Outrora eu teria feito propaganda por uma ampla publicidade; agora reconheço que isso teria sido inútil, pois os nossos adversários disto se encarregaram às suas custas. Não pondo, então, grandes recursos à minha disposição para esse objetivo, os Espíritos quiseram provar que o Espiritismo devia seu sucesso à sua própria força.

Hoje, que o horizonte se alargou, que sobretudo o futuro se desdobrou, necessidades de uma outra ordem se fazem sentir. Um capital como o que supondes teria um emprego mais útil. Sem entrar em detalhes que seriam prematuros, direi apenas que uma parte serviria para converter minha propriedade numa casa especial de retiro espírita cujos habitantes colheriam os benefícios de nossa doutrina moral; a outra para constituir uma renda inalienável destinada: 1.º — à manutenção do estabelecimento; 2.º — para assegurar uma existência independente àquele que me suceder e àqueles que o ajudarem em sua missão; 3.º — para atender às necessidades correntes do Espiritismo, sem os riscos de produtos eventuais, como sou obrigado a fazer, pois a maior parte de seus recursos repousa em meu trabalho, que terá um termo.

Eis o que eu faria. Mas se esta satisfação não me é dada, sei que, de uma maneira ou de outra, os Espíritos que dirigem o movimento proverão a todas as necessidades em tempo útil. Eis por que absolutamente não me inquieto com isto, e me ocupo com o que é para mim a coisa essencial: o término dos trabalhos que me restam a concluir. Feito isto, partirei quando a Deus aprouver chamar-me.

III
Dos cismas.

Uma questão que se apresenta logo de saída ao pensamento é a dos cismas que poderão nascer no seio da doutrina. O Espiritismo deles será preservado?

Certamente não, porque ele terá, sobretudo no começo, que lutar contra as ideias pessoais, sempre absolutas, tenazes, demoradas para se ligarem às ideias de outrem, e contra a ambição daqueles que, a despeito de tudo, querem ligar seu nome a uma inovação qualquer; que criam novidades unicamente para poder dizer que não pensam e não fazem como os outros; ou porque o seu amor-próprio sofre por só ocuparem um lugar secundário; ou, enfim, que veem com despeito um outro fazer o que não fizeram e, além disso, triunfar. Mas como lhes temos dito centenas de vezes: “Quem vos barra o caminho? Quem vos impede de trabalhar pelo vosso lado? Quem vos proíbe de publicar as vossas obras? A publicidade vos está aberta como a todo o mundo; dai qualquer coisa de melhor do que o que aí está, pois ninguém a isto se opõe; sede mais apreciados pelo público, e ele vos dará a preferência.”

Se o Espiritismo não pode escapar às fraquezas humanas, com as quais sempre é preciso contar, pode paralisar as suas consequências, e é o essencial.

É evidente que os numerosos sistemas divergentes que surgiram na origem do Espiritismo, sobre a maneira de explicar os fatos, desapareceram à medida que a doutrina se completava pela observação e por uma teoria racional; é difícil que hoje esses primeiros sistemas ainda encontrem alguns raros partidários. Aí está um fato notório, do qual se pode concluir que as últimas divergências apagar-se-ão com a completa elucidação de todas as partes da doutrina; mas haverá sempre os dissidentes de ideias preconcebidas, interesseiros, por uma causa ou por outra, em constituir grupo à parte. É contra sua pretensão que é necessário premunir-se.

Para assegurar a unidade no futuro, uma condição indispensável é que todas as partes do conjunto da doutrina estejam determinadas com precisão e clareza, sem nada deixar no vazio; para isto procedemos de maneira que os nossos escritos não deixassem espaço para a nenhuma interpretação contraditória, e nos esforçaremos para que seja sempre assim. Quando ele tiver dito claramente e sem ambiguidade que dois e dois são quatro, ninguém poderá pretender que dissemos que dois e dois são cinco. Poderão, pois, ao lado da doutrina, formar-se seitas que não lhe adotem os princípios, ou todos os princípios, mas não dentro da própria doutrina, pela interpretação de seu texto, como se formaram, tão numerosas, sobre o sentido das próprias palavras do Evangelho. Aí está um primeiro ponto, de uma importância capital.

O segundo ponto é não sair do círculo das ideias práticas. Se é certo que a utopia de ontem muitas vezes é a verdade de amanhã, deixemos ao amanhã o trabalho de realizar a utopia de ontem, mas não embaracemos a doutrina com princípios que seriam considerados como quimeras e que fariam que os homens positivos a rejeitassem.

O terceiro ponto, enfim, é inerente ao caráter essencialmente progressivo da doutrina. Porque ela não se embala em sonhos irrealizáveis para o presente, não se segue que no presente ela se imobilize. Exclusivamente apoiada nas leis da natureza, ela não pode variar mais que essas leis; mas, se uma nova lei for descoberta, deve a ela ligar-se. O Espiritismo não deve fechar a porta a nenhum progresso, sob pena de suicidar-se; assimilando todas as ideias reconhecidas como justas, sejam de que ordem forem, físicas ou metafísicas, ele jamais será ultrapassado, e aí está uma das principais garantias de sua perpetuidade.

Se, pois, uma seita se forma ao seu lado, baseada ou não nos princípios do Espiritismo, acontecerá de duas uma: ou essa seita estará com a verdade, ou não estará; se não estiver, cairá por si mesma, sob o ascendente da razão e do senso comum, como tantas outras já caíram ao longo dos séculos; se as ideias forem justas, ainda que só sobre um ponto, a doutrina, que procura o bem e a verdade em toda parte em que se encontrem, as assimilará, de sorte que em vez de ser absorvida, será ela que absorverá.

Se alguns de seus membros vierem a se separar dela, é que eles acreditarão que podem fazer melhor, e se realmente fizerem melhor, ela os imitará; se fizerem maior bem, ela se esforçará por fazer outro tanto ou mais, se possível; se fizerem mais mal, ela os deixará fazer, certa de que, mais cedo ou mais tarde, o bem triunfará sobre o mal e o verdadeiro sobre o falso. Eis a única luta que ela travará.

Acrescentemos que a tolerância, consequência da caridade, que é a base da moral espírita, lhe determina respeitar todas as crenças. Querendo ser aceita livremente, por convicção e não por constrangimento, proclamando a liberdade de consciência como um direito natural imprescritível, diz ela: Se eu tiver razão, os outros acabarão pensando como eu; se eu estiver errada, acabarei por pensar como os outros. Em virtude destes princípios, não jogando pedra em ninguém, ela não dará qualquer pretexto a represálias, e deixará aos dissidentes toda a responsabilidade de suas palavras e atos.

O programa da doutrina, portanto, não será invariável senão nos princípios que passaram ao estado de verdades constatadas; quanto aos outros, ela não os admitirá, como sempre fez, senão a título de hipóteses, até a confirmação. Se lhe for demonstrado que está errada num ponto, ela se modificará nesse ponto.

A verdade absoluta é eterna, e por isto mesmo invariável; mas quem se pode gabar de possuí-la toda inteira? No estado de imperfeição dos nossos conhecimentos, o que hoje nos parece falso, amanhã pode ser reconhecido como verdadeiro, por força da descoberta de novas leis; é assim que as coisas acontecem tanto na ordem moral como na ordem física. É contra esta eventualidade que a doutrina jamais deve achar-se desprevenida. O princípio progressivo, que ela inscreve no seu código, será, como dissemos, a salvaguarda de sua perpetuidade, e sua unidade será mantida precisamente porque não repousa sobre o princípio da imobilidade. A imobilidade, em vez de ser uma força, torna-se a causa de fraqueza e de ruína para quem não segue o movimento geral. Ela rompe a unidade, porque aqueles que querem avançar se separam dos que se obstinam em ficar para trás. Mas, acompanhando o movimento progressivo, é preciso fazê-lo com prudência e guardar-se de baixar a cabeça aos sonhos das utopias e dos sistemas. É preciso fazê-lo a tempo, nem muito cedo nem muito tarde, e com conhecimento de causa.

Compreende-se que uma doutrina assente em tais bases deve ser realmente forte; ela desafia toda concorrência e neutraliza as pretensões de seus competidores. É para este ponto que os nossos esforços tendem a conduzir a doutrina espírita.

Ademais, a experiência já justificou esta previsão. Tendo a doutrina trilhado este caminho desde a sua origem, ela avançou constantemente, mas sem precipitação, observando sempre se o terreno onde põe os pés é sólido, e medindo os passos pelo estado da opinião. Ela fez como o navegador que não avança senão com a sonda na mão e consultando os ventos.

IV
O chefe do Espiritismo.

Mas quem será encarregado de manter o Espiritismo nessa via? Quem terá mesmo a força? Quem terá o tempo disponível e a perseverança para dedicar-se ao trabalho incessante que exige semelhante tarefa? Se o Espiritismo for entregue a si mesmo, sem guia, não é de temer que ele se desvie de sua rota? Que a malevolência, a que por muito tempo ainda estará exposto, não se esforce por lhe desnaturar o espírito? Com efeito, aqui está uma questão vital cuja solução é do maior interesse para o futuro da doutrina.

A necessidade de uma direção central superior, guardiã vigilante da unidade progressiva e dos interesses gerais da doutrina, é de tal modo evidente que já se inquietam por não ver ainda um condutor surgir no horizonte. Compreende-se que, sem uma autoridade moral capaz de centralizar os trabalhos, os estudos e as observações, de dar o impulso, de estimular o zelo, de defender o fraco, de amparar as coragens vacilantes, de ajudar com os conselhos da experiência, de fixar a opinião sobre os pontos incertos, o Espiritismo correria o risco de navegar à deriva. Não só essa direção é necessária, mas é preciso que ela tenha força e estabilidade suficientes para enfrentar as tempestades.

Aqueles que não querem qualquer autoridade não compreendem os verdadeiros interesses da doutrina. Se alguns pensam poder dispensar qualquer direção, a maioria, aqueles que não creem em sua infalibilidade e não têm uma confiança absoluta em suas próprias luzes, sentem necessidade de um apoio, de um guia, mesmo que fosse apenas para ajudá-los a avançar com mais firmeza e segurança. (Vide Revista de abril de 1866: O Espiritismo independente.)

Estabelecida a necessidade de uma direção, de quem o chefe receberia os poderes? Será ele aclamado pela universalidade dos adeptos disseminados pelo mundo inteiro? É uma coisa impraticável. Se ele se impuser por sua autoridade privada, será aceito por uns, rejeitado por outros e vinte pretendentes podem surgir erguendo bandeira contra bandeira; seria ao mesmo tempo o despotismo e a anarquia. Semelhante ato seria próprio de um ambicioso, e ninguém seria menos adequado que um ambicioso, e por isto mesmo orgulhoso, para dirigir uma doutrina baseada na abnegação, no devotamento, no desinteresse e na humildade; colocado fora do princípio fundamental da doutrina, ele não poderia senão falsear-lhe o espírito. É o que inevitavelmente aconteceria se ele não tivesse previamente tomado medidas eficazes para evitar esse inconveniente.

Admitamos, entretanto, que um homem reúna todas as qualidades requeridas para o desempenho de seu mandado, e que chegue à direção superior por uma via qualquer: os homens se sucedem, mas não se assemelham; depois de um homem bom pode vir um mau; com o indivíduo pode mudar o espírito da direção; sem maus propósitos, ele pode ter pontos de vista mais ou menos justos; se quiser fazer prevalecer suas ideias pessoais, ele pode deturpar a doutrina, suscitar divisões, e as mesmas dificuldades renovar-se-ão a cada mudança. É preciso não perder de vista que o Espiritismo ainda não está na plenitude de sua força do ponto de vista da organização. Ele é uma criança que apenas começa a andar. Importa, pois, sobretudo no começo, premuni-lo contra as dificuldades do caminho.

Mas, perguntarão, um dos messias anunciados que devem tomar parte na regeneração, não estará à testa do Espiritismo? É provável, mas como eles não trarão na testa uma marca para se fazerem reconhecer, e como só se afirmarão por seus atos, e não serão reconhecidos como tais pela maioria senão depois de sua morte, conforme o que tiverem feito durante a vida; como, além disto, não haverá messias perpétuos, é preciso prever todas as eventualidades. Sabemos que sua missão será múltipla; que haverá messias em todos os degraus da escala e nos diversos ramos da economia social, onde cada um exercerá sua influência em proveito das ideias novas, conforme a especialidade de sua posição; todos trabalharão, pois, para o estabelecimento da doutrina, seja numa parte, seja noutra, uns como chefes de Estado, outros como legisladores, como magistrados, cientistas, literatos, oradores, industriais etc.; cada um dará provas de si mesmo no seu ramo, desde o proletário até o soberano, sem que nada além das suas obras o distingam do comum dos homens. Se um deles deve tomar parte na direção administrativa do Espiritismo, é provável que providencialmente seja colocado em condições de aí chegar pelos meios legais que forem adotados. Circunstâncias aparentemente fortuitas para lá o conduzirão, sem desígnio premeditado de sua parte, sem que ele tenha consciência da missão. (Revista espírita: “Os messias do Espiritismo”, fevereiro e março de 1868.)

Em semelhante caso, o pior de todos os chefes seria aquele que se desse por eleito de Deus. Como não é racional admitir que Deus confie tais missões a ambiciosos ou orgulhosos, as virtudes características de um verdadeiro messias devem ser, antes de tudo, a simplicidade, a humildade, a modéstia, numa palavra, o mais completo desinteresse material e moral. Ora, apenas pretensão de ser messias já seria a negação dessas qualidades essenciais, pois ela provaria, naquele que se prevalecesse de semelhante título, ou uma tola presunção, se fosse de boa-fé, ou uma notável impostura. Não faltarão intrigantes, pseudoespíritas que se queiram elevar pelo orgulho, pela ambição ou pela cupidez; outros que alardearão pretensas revelações, com a ajuda das quais procurarão pôr-se em relevo e fascinar as imaginações muito crédulas. É preciso prever, também, que sob falsas aparências, indivíduos poderiam tentar apoderar-se do leme com a segunda intenção de afundar o barco, desviando-o de sua rota. Ele não naufragará, mas poderia experimentar desagradáveis atrasos que é preciso evitar. Eis aí, sem contestação, os maiores escolhos de que o Espiritismo se deve guardar; quanto mais consistência ele toma, mais embustes lhe criarão os seus adversários.

Portanto, é dever de todos os espíritas sinceros desviar as manobras da intriga que podem ser urdidas tanto nos menores quanto nos maiores centros. Eles deverão logo de saída repudiar do modo mais absoluto quem quer que pessoalmente se apresentasse como um messias, quer como chefe do Espiritismo, quer como simples apóstolo da doutrina. Conhece-se a árvore pelo seu fruto. Esperai, pois, que ela tenha dado frutos antes de julgar se é boa, e olhai ainda se os frutos não estão bichados. (O Evangelho segundo o Espiritismo, Cap. XXI, n.o 9: “Caracteres do verdadeiro profeta”).

Alguém com quem conversávamos a esse respeito, propunha o seguinte expediente: fazer designar os candidatos pelos próprios Espíritos em cada grupo ou sociedade espírita. Além deste meio não evitar todos os inconvenientes, haveria outros especiais nesse modo de proceder, que a experiência já demonstrou e que seria supérfluo aqui relembrar. Não se deve perder de vista que a missão dos Espíritos é de instruir-nos, de melhorar-nos, mas não de tirar a iniciativa do nosso livre-arbítrio. Eles nos sugerem pensamentos, ajudam-nos com seus conselhos, sobretudo no que concerne às questões morais, mas deixam ao nosso arbítrio o cuidado da execução das coisas materiais que eles não têm a missão de nos poupar. Em seu mundo, eles têm atribuições que não são as daqui debaixo; pedir-lhes o que está fora de suas atribuições, é expor-se às trapaças dos Espíritos levianos. Que os homens se contentem em serem assistidos e protegidos por bons Espíritos, mas que não descarreguem sobre eles a responsabilidade que incumbe aos encarnados.

Ademais, esse meio suscitaria mais embaraços do que se pensa, pela dificuldade de fazer todos os grupos participarem dessa eleição; seria uma complicação nas engrenagens, e quanto mais simplificadas forem as engrenagens, tanto menos susceptíveis elas serão de desorganizar-se.

O problema é, pois, constituir uma direção central, em condições de força e de estabilidade que a ponham ao abrigo das flutuações; que respondam a todas as necessidades da causa e que oponham uma barreira absoluta às manobras da intriga e da ambição. Tal é o objetivo do plano, do qual vamos dar um rápido esboço.

V
Comitê central.

Durante o período de elaboração, a direção do Espiritismo teve que ser individual; era necessário que todos os elementos constitutivos da doutrina, que saíram em estado de embriões de uma infinidade de focos, chegassem a um centro comum, para aí serem examinados e cotejados, e que um só pensamento presidisse à sua coordenação, para estabelecer a unidade no conjunto e a harmonia em todas as partes. Se tivesse sido de outro modo, a doutrina ter-se-ia assemelhado a esses edifícios híbridos projetados por vários arquitetos, ou a um mecanismo cujas engrenagens não se ajustam umas às outras com precisão.

Nós o dissemos, porque é uma incontestável verdade, hoje claramente demonstrada, que a doutrina não podia sair, em todas as peças, de um único centro, como toda a ciência astronômica de um só observatório. Todo centro que tivesse tentado constituí-la só com as suas observações, teria feito algo de incompleto e terse-ia achado, numa infinidade de pontos, em contradição com os outros. Se mil centros tivessem querido fazer a sua doutrina, não teria havido duas iguais em todos os pontos. Se elas estivessem de acordo quanto ao conteúdo, inevitavelmente difeririam quanto à forma. Ora, como há muita gente que vê a forma de preferência ao conteúdo, teria havido tantas seitas quantas formas diferentes. A unidade não poderia sair senão do conjunto e da comparação de todos os resultados parciais. Eis por que a concentração dos trabalhos era necessária (A Gênese, Cap. 1. “Caracteres da revelação espírita”, n.º 51 e seguintes).

Mas o que era uma vantagem numa época, mais tarde tornar-se-ia um inconveniente. Hoje, que o trabalho de elaboração está terminado, no que concerne às questões fundamentais; que estão estabelecidos os princípios gerais da ciência, a direção, de individual que teve de ser no começo, deve tornar-se coletiva, primeiramente porque vem um momento em que seu peso excede as forças de um homem, e em segundo lugar porque há mais garantia para a manutenção da unidade numa reunião de indivíduos, cada um dos quais tem apenas a sua voz no capítulo, e onde ninguém nada pode sem o concurso dos outros do que num só, que pode abusar de sua autoridade e querer fazer predominarem suas ideias pessoais.

Em vez de um chefe único, a direção será entregue a um comitê central ou conselho superior permanente — o nome pouco importa — cuja organização e atribuições serão definidos de maneira a nada deixar ao arbítrio de um só. Esse comitê será composto de doze membros titulares, no máximo, os quais deverão, para tanto, reunir certas condições indispensáveis, e um número igual de conselheiros. Conforme as necessidades, ele poderá ser secundado por membros auxiliares ativos. Ele se completará por si mesmo, segundo regras igualmente determinadas, de forma a evitar todo favoritismo, à medida das vacâncias por falecimento ou por outras causas. Uma disposição especial estabelecerá a forma de nomeação dos primeiros doze.

Cada membro presidirá durante um ano, e aquele que desempenhará essa função será designado por sorteio.

A autoridade do presidente é puramente administrativa; ele dirige as deliberações do comitê e superintende a execução dos trabalhos e a administração do expediente. Mas, fora das atribuições que lhe são conferidas pelos estatutos constitutivos, ele não pode tomar qualquer decisão sem o concurso do comitê. Portanto, impossíveis os abusos, nenhum incentivo à ambição, nenhum pretexto para intrigas ou ciúmes, nada de supremacia chocante.

O comitê ou conselho superior será, pois, a cabeça, o verdadeiro chefe do Espiritismo, chefe coletivo que nada pode sem o assentimento da maioria e, em certos casos, sem o de um congresso ou assembleia geral. Suficientemente numeroso para se esclarecer pela discussão, não o será bastante para que aí haja confusão.

Os congressos serão constituídos por delegados das sociedades particulares regularmente constituídas e colocadas sob o patrocínio do comitê por sua adesão e pela conformidade de seus princípios.

Com referência aos adeptos, a aprovação ou a desaprovação, o consentimento ou a recusa, as decisões, numa palavra, de um corpo constituído que representa uma opinião coletiva, terão forçosamente uma autoridade que jamais teriam se emanassem de um só indivíduo que representaria apenas uma opinião pessoal. Muitas vezes rejeitamos a opinião de um só e nos julgamos humilhados ao nos submetermos a ela, ao passo que aceitamos sem dificuldade a opinião de muitos.

É claro que aqui se trata de uma autoridade moral, no que concerne à interpretação e à aplicação dos princípios da doutrina, e não de um poder disciplinar qualquer. Essa autoridade será, em matéria de Espiritismo, o que é a de uma Academia em matéria de ciência.

Para o público estranho, um corpo constituído tem mais ascendente e preponderância; contra os adversários, sobretudo, ele apresenta uma força de resistência e possui meios de ação que um indivíduo não poderia ter; ele luta infinitamente com mais vantagem. Uma individualidade pode ser atacada e destruída; não se dá o mesmo com um ser coletivo.

Num ser coletivo há igualmente uma garantia de estabilidade que não existe quando tudo repousa numa única cabeça; se o indivíduo for impedido por uma causa qualquer, tudo pode ser entravado. Ao contrário, um ser coletivo se perpetua incessantemente; se perder um ou vários de seus membros, nada periclita.

Dir-se-á que a dificuldade será reunir, de maneira permanente, doze pessoas que estejam sempre de acordo.

O essencial é que estejam de acordo quanto aos princípios fundamentais; ora, isto será uma condição absoluta para sua admissão, como a de todos os participantes da direção. Sobre as questões acessórias, pouco importa sua divergência, pois é a opinião da maioria que prevalece. Para aquele cuja maneira de ver é justa, não faltarão boas razões para justificá-la. Se um deles, contrariado por não poder fazer que suas ideias sejam admitidas, se retirasse, nem por isso as coisas deixariam de seguir o seu curso e não haveria motivo para lamentá-lo, pois ele daria prova de uma susceptibilidade orgulhosa pouco espírita que poderia tornar-se uma causa de perturbação.

A causa mais comum de divisão entre cointeressados é o conflito de interesses e a possibilidade de um suplantar outro em seu proveito. Esta causa não tem a menor razão de ser quando o prejuízo de um não pode beneficiar os outros, que são solidários e não podem senão perder, em vez de ganhar, pela desunião. Isto é uma questão de detalhe prevista na organização.

Admitamos que entre eles se ache um falso irmão, um traidor, ganho pelos inimigos da causa. O que poderia ele, se não tem senão sua voz nas decisões? Suponhamos que, embora quase impossível, o comitê inteiro enveredasse por um mau caminho: as assembleias gerais aí estariam para pôr as coisas em ordem.

O controle dos atos da administração estará nas assembleias, que poderão decretar a censura ou uma acusação contra o comitê central, por causa da infração de seu mandato, do desvio dos princípios reconhecidos, ou das medidas prejudiciais à doutrina. É por isto que ela apelará às assembleias nas circunstâncias em que julgar que a sua responsabilidade poderia ser gravemente comprometida.

Se, pois, as assembleias são um freio para o comitê, este adquire uma nova força em sua aprovação. É assim que esse chefe coletivo depende, em definitivo, da opinião geral e não pode, sem perigo para si mesmo, afastar-se do reto caminho.

Quando o comitê for organizado, dele faremos parte a título de simples membro, tendo nossa parcela de colaboração, sem reivindicar para nós nem supremacia, nem título, nem qualquer privilégio.

Às atribuições gerais do comitê serão anexados, como dependências locais:

1.º — Uma biblioteca onde estarão reunidas todas as obras que interessam ao Espiritismo, e que poderão ser consultadas no local ou cedidas por empréstimo, para leitura;

2.º — Um museu, onde serão reunidas as primeiras obras da arte espírita, os trabalhos mediúnicos mais notáveis, os retratos dos adeptos que tenham merecido essa distinção por seu devotamento à causa, os dos homens que o Espiritismo honra, embora estranhos à doutrina, como benfeitores da humanidade, grandes gênios missionários do progresso etc.[4]

3.º — Um dispensário destinado às consultas médicas gratuitas e ao tratamento de certas afecções, sob a direção de um médico diplomado;

4.º — Uma caixa de socorro e previdência, em condições práticas;

5.º — Uma casa de retiro;

6.º — Uma sociedade de adeptos com sessões regulares.


O futuro museu já possui oito quadros de grandes dimensões, que só esperam um local conveniente, verdadeiras obras-primas da Arte, especialmente executadas em vista do Espiritismo, por um artista de renome que generosamente as ofereceu à doutrina. É a inauguração da arte espírita por um homem que reúne a fé sincera ao talento dos grandes mestres. Em tempo hábil daremos sua descrição detalhada.


VI
Obras fundamentais da doutrina.

Muitas pessoas lamentam que as obras fundamentais da doutrina tenham um preço muito alto para grande número de leitores, e pensam, com razão, que se fossem feitas edições populares a baixo custo, elas estariam muito mais espalhadas, com o que ganharia para doutrina.

Estamos completamente de acordo, mas as condições em que são editadas não permitem que seja de outro modo, no estado atual das coisas. Esperamos chegar um dia a esse resultado, com o auxílio de uma nova combinação compatível com o plano geral de organização, mas essa operação não pode ser realizada se não for empreendida em larga escala. Apenas de nossa parte ela exigiria capitais que não possuímos, bem como cuidados materiais que os nossos trabalhos, que reclamam todas as nossas meditações, não nos permitem dar. Assim, a parte comercial propriamente dita foi negligenciada, ou melhor, sacrificada ao estabelecimento da parte doutrinária. O que importava, antes do tudo, era que as obras fossem feitas e assentadas as bases da doutrina.

Quando a doutrina for organizada pela constituição do comitê central, nossas obras tornar-se-ão propriedade do Espiritismo em nome desse mesmo comitê, que terá a sua gerência e dará os necessários cuidados à sua publicação por meios mais próprios para popularizá-las. Ele deverá igualmente ocupar-se de sua tradução para as principais línguas estrangeiras.

A Revista foi, até hoje, e não podia ser senão uma obra pessoal, tendo em vista que ela faz parte de nossas obras doutrinárias, servindo aos anais do Espiritismo. É aí que todos os princípios novos são elaborados e postos em estudo. Era, pois, necessário que ela conservasse o seu caráter individual, para o estabelecimento da unidade.

Muitas vezes solicitaram que a editássemos em intervalos menores. Por mais lisonjeiro que nos fosse tal desejo, não pudemos aceder, em primeiro lugar porque o tempo material não nos permitia essa sobrecarga de trabalho, e em segundo lugar porque ela não devia perder o seu caráter essencial, que não é o de um jornal propriamente dito.

Hoje que a nossa obra pessoal se aproxima de seu termo, as necessidades não são mais as mesmas; a Revista tornar-se-á, como as nossas obras feitas e por fazer, propriedade coletiva do comitê, que tomará a sua direção, para maior utilidade do Espiritismo, sem que por isto renunciemos a lhe dar a nossa colaboração.

Para completar a obra doutrinária, resta-nos publicar várias obras, que não são a sua parte menos difícil, nem a menos penosa. Embora possuamos todos os seus elementos e o programa esteja traçado até o último capítulo, poderíamos dar-lhes cuidados mais assíduos e ativá-las se, pela instituição do comitê central, estivéssemos livres de detalhes que absorvem grande parte do nosso tempo.

VII
Atribuições do comitê.

As principais atribuições do comitê central serão:

1.º — O cuidado dos interesses da doutrina e sua propagação; a manutenção de sua unidade pela conservação da integridade dos princípios reconhecidos; o desenvolvimento de suas consequências;

2.º — O estudo dos princípios novos, susceptíveis de entrar no corpo da doutrina;

3.º — A concentração de todos os documentos e informações que possam interessar ao Espiritismo;

4.º — A correspondência;

5.º — A manutenção, a consolidação e a extensão dos laços de fraternidade entre os adeptos e as sociedades particulares dos vários países;

6.º — A direção da Revista, que será o jornal oficial do Espiritismo, e à qual poderá juntar-se outra publicação periódica;

7.º — O exame e a apreciação das obras, artigos de jornais e todos os escritos que interessam à doutrina. A refutação dos ataques, se for o caso;

8.º — A publicação das obras fundamentais da doutrina, nas condições mais adequadas à sua vulgarização. A confecção e a publicação das que nós daremos o plano e que não tivermos tempo de fazer em nossa vida. Os encorajamentos dados às publicações que puderem ser úteis à causa;

9.º — A fundação e a conservação da biblioteca, dos arquivos e do museu;

10.º — A administração da caixa de socorro, do dispensário e da casa de retiro;

11.º — A administração dos negócios materiais;

12.º — A direção das sessões da Sociedade;

13.º — O ensino oral;

14.º — As visitas e instruções às reuniões e sociedades particulares que se colocarem sob seu patrocínio;

15.º — A convocação dos congressos e assembleias gerais.

Essas atribuições serão repartidas entre os diversos membros do comitê, segundo a especialidade de cada um, os quais, se necessário, serão assistidos por um número suficiente de membros auxiliares ou por simples empregados.

Em consequência, entre os membros do comitê haverá:

Um secretário geral para a correspondência e atas das sessões do comitê; Um redator-chefe para a Revista e as outras publicações;

Um bibliotecário arquivista, encarregado também do exame e das críticas das obras e artigos de jornais;

Um diretor da caixa de socorro, além disso encarregado da direção do dispensário, das visitas aos doentes e aos necessitados, e de tudo o que se refere à beneficência. Este será secundado por um comitê de beneficência, escolhido no seio da Sociedade, e formado de pessoas caridosas de boa vontade;

Um contador, encarregado dos negócios e interesses materiais;

Um diretor especial para os negócios concernentes às publicações;

Oradores para o ensino oral, além disso encarregados de visitar as sociedades dos Departamentos e aí dar instruções. Poderão ser escolhidos entre os membros auxiliares e os adeptos de boa vontade, que para tanto receberão uma autorização especial.

Seja qual for a extensão dos negócios e do pessoal administrativo, o comitê será sempre limitado ao mesmo número de membros titulares.

Até agora tivemos de nos bastar sozinhos a esse programa. Assim, algumas de suas partes foram negligenciadas ou apenas puderam ser esboçadas, e as que são mais especialmente da nossa competência, tiveram que sofrer inevitáveis atrasos, pela necessidade de nos ocuparmos de tantas coisas, quando o tempo e a força têm limites e uma só absorveria o tempo de um homem.

VIII
Vias e meios.

É sem dúvida desagradável ser obrigado a entrar em considerações materiais para atingir um objetivo todo espiritual, mas é preciso observar que a própria espiritualidade da obra se prende à questão da Humanidade terrena e de seu bemestar; que não se trata mais apenas da difusão de algumas ideias filosóficas, mas de fundar alguma coisa de positivo e durável, para a extensão e a consolidação da doutrina que deve produzir os frutos que ela é suscetível de dar.

Imaginar que ainda estamos nos tempos em que alguns apóstolos podiam pôr-se a caminho com o cajado de viagem, sem preocupação com a hospedagem e o pão cotidiano, seria uma ilusão logo desfeita por uma amarga decepção. Para fazer algo de sério, é preciso que nos submetamos às necessidades impostas pelos costumes da época em que vivemos. Essas necessidades são muito diferentes daquelas dos tempos patriarcais. O próprio interesse do Espiritismo exige, pois, que calculemos os meios de ação para não sermos detidos no meio do caminho. Calculemos, pois, já que estamos num século em que é preciso contar.

As atribuições do comitê central serão bastante numerosas, como podemos ver, por necessitar uma verdadeira administração. Tendo cada membro funções ativas e assíduas, se não nos tornássemos senão homens de boa vontade, os trabalhos poderiam sofrer com isso, porque ninguém teria direito de censurar os negligentes. Para a regularidade dos trabalhos e do expediente, é necessário ter homens com cuja assiduidade se possa contar, e cujas funções não sejam simples atos de complacência. Quanto mais independência eles tiverem por seus recursos pessoais, menos eles ficarão adstritos a ocupações assíduas; se não as tiverem, poderão dar o seu tempo. É preciso, pois, que sejam recompensados, assim como o pessoal administrativo. Com isso a doutrina ganhará em força, estabilidade, pontualidade, ao mesmo tempo que será um meio de prestar serviço a pessoas que dele poderiam ter necessidade.

Um ponto essencial na economia de toda administração previdente é que sua existência não repousa sobre produtos eventuais que podem faltar, mas sobre recursos fixos, regulares, de maneira que sua marcha, aconteça o que acontecer, não possa ser entravada. É necessário, portanto, que as pessoas chamadas a dar o seu concurso não possam conceber qualquer inquietação pelo futuro. Ora, a experiência demonstra que devemos considerar como aleatórios os recursos que não se baseiam senão no produto de cotizações, sempre facultativas, sejam quais forem os compromissos assumidos, e de uma cobertura muitas vezes difícil. Assentar as despesas permanentes e regulares em recursos eventuais, seria uma falta de previdência que um dia poderíamos lamentar. Sem dúvida as consequências são menos graves quando se trata de fundações temporárias que duram o tempo que podem. Mas aqui é uma questão do futuro. A sorte de uma administração como esta não pode estar subordinada aos riscos de um negócio comercial; ela deve ser, desde o começo, tão florescente, pelo menos tão estável quanto será daqui a um século.

Quanto mais sólida for a sua base, menos exposta estará aos golpes da intriga.

Em semelhante caso, a mais vulgar prudência quer que capitalizemos os recursos de maneira inalienável, à medida que eles cheguem, a fim de constituir um rendimento perpétuo, ao abrigo de todas as eventualidades. Quando a administração regula suas despesas pelo rendimento, sua existência não ficará comprometida em caso algum, porquanto ela sempre terá meios para funcionar. Inicialmente, ela pode ser organizada numa escala menor; os membros do comitê provisoriamente podem limitar-se a cinco ou seis, o pessoal e os gastos administrativos reduzidos ao mínimo possível, com a condição mínima de proporcionarem o desenvolvimento pelo incremento dos recursos para cobertura dos gastos considerados indispensáveis.

Pessoalmente, e embora parte ativa do comitê, não constituiremos sobrecarga ao orçamento, nem por emolumentos, nem por indenização de viagens, nem por uma causa qualquer. Se jamais pedimos algo para nós, ainda menos o faríamos nesta circunstância; nosso tempo, nossa vida, todas as nossas forças físicas e intelectuais pertencem à doutrina. Declaramos, pois, formalmente, que nenhuma parte dos recursos de que disporá o comitê será desviada em nosso proveito.

Ao contrário, a ele trazemos nossa quota-parte:

1.º — Pela cessão do lucro de nossas obras, feitas e por fazer; 2.º — Pelo aporte de valores mobiliários e imobiliários.

Assim, fazemos votos para a realização do nosso plano, no interesse da doutrina, e não para criarmos uma posição para nós, da qual não necessitamos. Foi para preparar os caminhos desta instalação que até hoje consagramos o produto de nossos trabalhos, como dissemos acima. Se nossos meios pessoais não nos permitem fazer mais, pelo menos teremos a satisfação de nela haver posto a primeira pedra.

Suponhamos então que de alguma forma o comitê central, num dado tempo, esteja em condições de funcionar, o que pressupõe um rendimento de 25 a 30 mil francos, restringindo-se, inicialmente, os recursos de toda natureza de que ela disporá em capitais e produtos eventuais que constituirão a Caixa Geral do Espiritismo, a qual será objeto de uma rigorosa contabilidade. Sendo reguladas as despesas obrigatórias, o excedente da renda aumentará o fundo comum. É proporcionalmente aos recursos desse fundo que o comitê proverá as diversas despesas úteis ao desenvolvimento da doutrina, sem que jamais possa dele tirar proveito pessoal, nem transformá-lo em fonte de especulação para qualquer de seus membros. O emprego dos fundos e a contabilidade serão, além disto, submetidos a verificação por comissários especiais, para esse efeito delegados pelos congressos ou assembleias gerais.

Um dos primeiros cuidados do comitê será o de ocupar-se com as publicações, desde que haja possibilidade, sem esperar poder fazê-lo com auxílio da renda; os fundos para isto destinados não serão, na realidade, senão um adiantamento, pois retornarão, pela venda das obras, e o produto voltará ao fundo comum. É um assunto administrativo.

Para dar a essa instituição uma existência legal ao abrigo de qualquer contestação, e dar-lhe, além disto, o direito de adquirir, receber e possuir, ela será constituída, se isto for julgado necessário, por ato autêntico, sob a forma de sociedade comercial anônima, por noventa e nove anos prorrogáveis indefinidamente, com todas as estipulações necessárias para que jamais possa afastar-se do seu objetivo, e que os fundos não possam ser desviados de sua destinação.

Sem aqui entrar em detalhes que seriam supérfluos e prematuros, devemos, entretanto, dizer algumas palavras sobre duas instituições acessórias do comitê, a fim de que não se enganem quanto ao sentido que a elas atribuímos. Queremos falar da caixa de socorro e da casa de retiro.

O estabelecimento de uma caixa geral de socorros é uma coisa impraticável, e que apresentaria sérios inconvenientes, como demonstramos num artigo especial (Revista de julho de 1866). O comitê não pode, pois, aventurar-se num caminho que em breve seria forçado a abandonar, nem empreender qualquer coisa que não esteja certo de poder realizar. Ele deve ser positivo e não embalar-se em ilusões quiméricas; é a maneira de avançar por muito tempo e com segurança. Para isto deve, em tudo, ficar nos limites do possível.

Essa caixa de socorro não pode nem deve ser senão uma instituição local, de ação circunscrita, cuja prudente organização poderá servir de modelo a outras do mesmo gênero, que as sociedades particulares poderiam criar. É por sua multiplicidade que elas poderiam prestar serviços eficazes, e não centralizando os meios de ação.

Ela será alimentada: 1.º — pela parte da renda da Caixa Geral do Espiritismo a ela destinada; 2.º — pelos donativos especiais que a ela forem feitos.

Ela capitalizará as somas recebidas, de maneira a constituir uma renda, e é com essa renda que ela prestará os auxílios temporários ou vitalícios e cumprirá as obrigações de seu mandato, que serão estipuladas em seu regulamento constitutivo.

O projeto de uma casa de retiro, na acepção completa do vocábulo, não pode ser executado de início, em razão dos capitais que semelhante fundação exigiria, e, além disto, porque é preciso deixar à administração o tempo necessário para ela firmar-se e caminhar com regularidade, antes de pensar em complicar suas atribuições por empreendimentos nos quais poderia fracassar.

Abraçar muitas coisas antes de se ter assegurado meios de execução, seria uma imprudência. Compreendereis isto facilmente se refletirdes em todos os detalhes que comportam estabelecimentos desse gênero. Sem dúvida é bom ter boas intenções, mas, antes de tudo, é preciso poder realizá-las.

IX
Conclusão.

Tais são as bases principais da organização que nos propomos dar ao Espiritismo, se as circunstâncias no-lo permitirem. Tivemos que desenvolver os motivos um pouco longamente, a fim de dar a conhecer o seu espírito. Os detalhes serão objeto de uma regulamentação minuciosa, na qual todos os casos serão previstos de maneira a levar em consideração todas as dificuldades.

Consequente com os princípios de tolerância e de respeito a todas as opiniões, que o Espiritismo professa, não pretendemos impor esta organização a ninguém, nem constranger quem quer que seja a submeter-se a ela. Nosso objetivo é estabelecer um primeiro laço entre os espíritas, que o desejam há muito tempo e se lastimam de seu isolamento. Ora, esse laço, sem o qual o Espiritismo, permanecendo no estado de opinião individual, sem coesão, não pode existir senão com a condição de se religar a um centro por uma comunhão de vistas e de princípios. Esse centro não é uma individualidade, mas um foco de atividade coletiva que age no interesse geral e no qual a autoridade pessoal se apaga.

Se ele não tivesse existido, qual teria sido o ponto de ligação dos espíritas espalhados em diversos países? Não podendo transmitir suas ideias, suas impressões, suas observações a todos os outros centros particulares, eles também disseminados e muitas vezes sem consistência, eles teriam ficado isolados, e a difusão da doutrina teria sofrido com isso. Era, pois, necessário um ponto onde todos chegassem, e de onde tudo pudesse irradiar. O desenvolvimento das ideias espíritas, longe de tornar esse centro inútil, fará que ele sinta melhor a sua necessidade, porque a necessidade de aproximação e de formação de um feixe será tanto maior quanto mais considerável for o número de adeptos.

Mas qual será a extensão do círculo de atividades desse centro? É ele destinado

a reger o mundo e a tornar-se o árbitro universal da verdade? Se ele tivesse essa pretensão, seria compreender mal o espírito do Espiritismo que, pelo simples fato de proclamar os princípios do livre exame e da liberdade de consciência, repudia o pensamento de se erigir em autocracia; desde o começo ele entraria num caminho fatal.

O Espiritismo tem princípios que, em razão de se fundarem nas leis da natureza, e não em abstrações metafísicas, tendem a tornar-se, e certamente tornar-se-ão um dia, os da universalidade dos homens. Todos os aceitarão, porque serão verdades palpáveis e demonstradas, como aceitaram a teoria do movimento da Terra; mas pretender que o Espiritismo em toda parte seja organizado da mesma maneira; que os espíritas do mundo inteiro sejam sujeitos a um regime uniforme, a uma mesma maneira de proceder; que eles devam esperar a luz de um ponto fixo no qual deverão fixar o olhar, seria uma utopia tão absurda quanto pretender que todos os povos da Terra um dia não formem senão uma nação, governada por um único chefe, regida pelo mesmo código de leis e sujeita aos mesmos costumes. Se há leis gerais que podem ser comuns a todos os povos, essas leis serão sempre, nos detalhes da aplicação e da forma, apropriadas aos costumes, aos caracteres, ao clima de cada uma.

Assim será com o Espiritismo organizado. Os espíritas do mundo inteiro terão princípios comuns que os ligarão à grande família pelo laço sagrado da fraternidade, mas cuja aplicação poderá variar conforme as regiões, sem que por isto seja rompida a unidade fundamental, sem formar seitas dissidentes que se atirem pedras e o anátema, o que seria profundamente antiespírita. Poderão formar-se e formar-se-ão, inevitavelmente, centros gerais em diversos países, sem outro laço além da comunhão de crença e da solidariedade moral; sem subordinação de um ao outro, sem que o da França, por exemplo, tenha a pretensão de se impor aos espíritas americanos e vice-versa.

A comparação das observações que citamos acima é perfeitamente justa. Há observatórios em diferentes pontos do globo; todos, seja qual for a nação a que pertençam, estão baseados nos princípios gerais reconhecidos da Astronomia, o que, por isso, não os torna tributários uns dos outros; cada um regulamenta seus trabalhos como entende; eles compartilham as suas observações, e cada um coloca à disposição da ciência as descobertas de seus confrades. Será o mesmo com os centros gerais do Espiritismo; serão os observatórios do mundo invisível, que permutarão o que tiverem de bom e aplicável aos costumes das regiões onde estiverem estabelecidos, pois o seu objetivo é o bem da humanidade, e não a satisfação das ambições pessoais.

O Espiritismo é uma questão de essência; ligar-se à forma seria uma puerilidade indigna da grandeza do assunto. Eis por que os centros diversos que estiverem imbuídos do verdadeiro espírito do Espiritismo deverão estender-se a mão fraterna e se unirem para combater seus inimigos comuns: a incredulidade e o fanatismo.

Bibliografia


Esse jornal, que há um ano era publicado em Madrid, sob o título de El criterio, revista quincenal científica, acaba de retomar o seu primeiro título, que tinha sido interdito no precedente governo espanhol. O diretor o anuncia nos seguintes termos, num suplemento do nº 17:

“Com a imensa alegria do triunfo, merecido não por nossas forças débeis, mas pela bondade de nossa causa, hoje nos dirigimos aos nossos constantes protetores, aos amigos que nos encorajaram e sustentaram na desgraça.

“A intolerância do governo anterior nos havia interditado o exercício da mais frutífera das liberdades: a do estudo, quando um dia, triste pela decepção, feliz porque foi o primeiro da luta, quisemos publicar o Criterio espiritista. Vejam a resposta que nos foi dada pelo secretário ministerial:

Governo da província; seção da imprensa. ─ Depois de haver examinado o primeiro número do jornal de que sois editor e diretor, vi que, por seu caráter especial, suas tendências e a escola filosófica que ele procura desenvolver, deve ser compreendido entre os que assinala o segundo parágrafo do artigo 52 da lei em vigor sobre a imprensa; previno-vos que não me é possível autorizar o dito número, nem os seguintes, se previamente não forem examinados e aprovados pela censura eclesiástica. Deus vos guarde etc.

Madri, 17 de julho de 1867.”

“No dia 10 de agosto seguinte recebemos o telegrama cuja cópia segue:

Secretaria eclesiástica de Madrid. ─ Em consequência da desfavorável censura com que foi atingido o primeiro número da Revista O Critério Espiritista, que vós dirigis, tenho o dever de vos manifestar que não posso, de modo algum, permitir, de minha parte, a publicação da dita Revista. Deus vos guarde, etc.

Madrid, 6 de agosto de 1867.”

“Estes documentos não contribuirão para a maior glória de seus autores, cujos nomes abstemo-nos de dar à publicidade, por conveniência. Hoje podemos vir à luz, e o Criterio científico é substituído pelo Criterio espiritista. A direção está instalada na Calle del Arco de Santa-Maria, nº 25, sala 2; é para aí que poderiam dirigir-se os adeptos que quisessem fazer parte da Sociedade Espírita Espanhola, fundada em 1865, e que teve que suspender suas sessões pelos mesmos motivos que haviam impedido a publicação do jornal.”

O regulamento da sociedade, que temos aos nossos olhos, é concebido em excelente espírito, e não podemos senão aplaudir as disposições que ele contém. Ele se coloca sob o patrocínio do Espírito de Sócrates, e seu objetivo é claramente definido nos dois primeiros artigos:

“1º - É constituído um círculo privado, sob a denominação de Sociedade Espírita Espanhola, cujo objeto é o estudo do Espiritismo, principalmente no que se refere à moral e ao conhecimento do mundo invisível ou dos Espíritos;

“2º - A sociedade não poderá, em caso algum, ocupar-se de questões políticas, nem de discussões ou controvérsias religiosas, que tenderiam a lhe dar o caráter de uma seita.”

Estas disposições são de natureza a assegurar os que supusessem à Sociedade tendências perturbadoras. No momento de uma revolução que acaba de quebrar os entraves postos à liberdade de pensar, de falar e de escrever, em que as massas emancipadas são geralmente tentadas a ultrapassar os limites da moderação, nem a Sociedade, nem o seu órgão pensam em aproveitá-lo para se afastar do objetivo exclusivamente moral e filosófico da Doutrina. Ela não proíbe apenas a política, mas até mesmo as controvérsias religiosas, por espírito de tolerância e de respeito à consciência de cada um. O diretor do jornal se abstém mesmo de estigmatizar, pela publicidade, os nomes dos signatários dos decretos que interditaram o seu jornal, para não entregá-los ao repúdio público. É que o Espiritismo bem compreendido é por toda a parte o mesmo: uma garantia de ordem e de moderação. Ele não vive de escândalos; ele tem o sentimento de sua dignidade em alto grau e vê as coisas de muito alto, para se rebaixar às personalidades que denotam sempre pequenez de espírito, e não se aliam jamais à nobreza de coração.

O primeiro número de Criterio espiritista contém os artigos seguintes:

Introdução, por Alverico Peron. ─ O Dia dos Mortos, comunicação assinada por Sócrates, recebida na Sociedade de Sevilha. ─ A faculdade mediúnica. ─ A Bíblia, comunicação assinada por Sócrates. ─ Sessão de magnetismo. ─ As metades eternas, comunicação de Sócrates. ─ Carta de um espírita. ─ Carta ao Sr. Alverico Peron, por Allan Kardec, e comunicação de São Luís sobre a nova situação do Espiritismo na Espanha. ─ Revista Espírita de Paris.

Aconselhamos com instância os nossos irmãos espíritas da Espanha a sustentar com todas as suas forças esse órgão de sua crença. Pela sabedoria e prudência de sua redação, ele não pode deixar de servir utilmente a nossa causa. Será um laço que estabelecerá relações entre os adeptos disseminados em diferentes pontos da Espanha. O diretor, Sr. Alverico Peron, não é um novato em nossas fileiras; seus esforços para a propagação da Doutrina datam de 1858, e nos lembramos com prazer a Fórmula del espiritismo, que ele teve a bondade de nos dedicar.


Aviso

A Revista Espírita começará a 1º de janeiro próximo seu décimo segundo ano. Aos senhores assinantes que não quiserem sofrer atraso, rogamos renovar sua assinatura antes de 31 de dezembro.

Como de costume, o número de janeiro será enviado a todos os antigos assinantes; os números seguintes sê-lo-ão quando forem feitas as renovações.

Propusemo-nos a publicar com o último número deste ano, um índice geral alfabético de todos os assuntos tratados, quer na Revista, quer em nossas outras obras, de maneira a facilitar as buscas, mas esse trabalho, muito mais considerável do que supusemos, para fazê-lo completo, não pôde ser terminado a tempo. Publicálo-emos com um dos nossos próximos números, e ele será enviado a todos os assinantes.

Também publicaremos em breve um catálogo de todas as obras que podem interessar à Doutrina, seja as que foram publicadas em vista do Espiritismo, seja aquelas que, publicadas fora do Espiritismo, e em diversas épocas, têm afinidade de princípios com as crenças novas. Será um guia para a formação das bibliotecas espíritas. Quando ele sair, a indicação das obras será seguida de curta apreciação, para dar a conhecer o seu espírito. Um aviso será feito do número da Revista em que ele tiver de ser publicado.

ALLAN KARDEC.


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